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ENTREVISTA
culado conceitos, por vezes polêmicos, Foi assim que, no dia 1 de julho, São Paulo, concedeu a Paulo Fontes
como “uberização” e “precariado” para uma greve de grandes proporções, o (Professor do Instituto de História da
procurar compreender esse fenômeno. chamado “breque dos apps”, parali- UFRJ e diretor da Universidade da Ci-
Por outro lado, empresas, o gover- sou grande parte dos entregadores em dadania) e Dulce Pandolfi (membro
no e grande parte da mídia procuram todo o país. Eles exigiam melhores re- da equipe da Universidade da Cidada-
negar a própria condição de “trabalha- munerações e condições de trabalho A nia) para o podcast Rádio Cidadania
dores” (e portanto de portadores de dimensão e força do movimento sur- da Universidade da Cidadania da UFRJ
direitos trabalhistas) para essas pessoas. preendeu a quase todos. Imagens de (http://cidadania.forum.ufrj.br/), um
Nessa retórica eles seriam “empreende- milhares de entregadores em suas ca- espaço de articulação e diálogo entre a
dores”, donos de seus próprios micro- racterísticas motos e bicicletas tomando universidade e os movimentos sociais.
-negócios que, em parceria com em- as ruas de diversas cidades e protestan- Uma versão editada da entrevista é re-
presas maiores, poderiam prosperar e do em um misto de raiva e festa foram produzida aqui. Paulo Galo, fundador
crescer. As ideias de “liberdade” e “auto- estampadas nos sites de jornais e rapi- do Movimento Entregadores Antifas-
nomia” (associadas inclusive à própria damente disseminadas por Whatsapp cistas, de 31 anos, rapper e morador da
mobilidade do uso de automóveis, mo- e outros aplicativos, quase que anun- periferia de São Paulo, rapidamente
tocicletas e bicicletas) são amplamente ciando o nascimento de um novo ator destacou-se como uma liderança arti-
associadas a uma cultura de “empreen- coletivo. As empresas de aplicativos de culada e engajada que desafiou o poder
dedorismo” que marcaria as relações entregas, percebendo a simpatia que das empresas de delivery, o governo, e
sociais nessa nova era digital. Apesar do o movimento provocava em amplas os disseminados discursos de empreen-
encobrimento das precárias condições parcelas da população e o estrago à sua dedorismo. Nessa entrevista ele conta
de trabalho e das evidentes relações de imagem, iniciaram imediata campanha como os entregadores que trabalham
dependência com as empresas, esse é de anúncios na televisão, mostrando-se com aplicativos resistem à precarização
um discurso sedutor que dialoga com como companhias “humanas” e “solidá- e geram novas formas de luta e reper-
os anseios e ambições de muitos. rias” a seus “colaboradores”, excelentes tórios de ação coletiva. Supreendente-
No entanto, a situação gerada pela “empreendedores” mente para muitos, no entanto, esses
pandemia desnudou de forma brutal O discurso articulado e politizado discursos e práticas de lutas voltados
a precariedade e a exploração a que os das lideranças dos entregadores tam- para o futuro não são feitos de forma
entregadores são expostos. Um associa- bém chamou a atenção. Reconheciam desconectada do passado. Ao contrario,
tivismo criado nos últimos anos pelos a força do discurso do “empreendedo- reiteradamente Galo reivindica o per-
chamados motoboys articulou-se às rismo” entre suas bases, mas afirma- tencimento a uma linhagem histórica
redes informais de sociabilidades, mui- vam combatê-lo e reivindicavam para de resistência de negros, mulheres e
tas delas ancoradas em uma linguagem sua categoria o estatuto de trabalhado- trabalhadores, articulada no campo da
identificada com o hip-hop e a valori- res, demandando sua inclusão na CLT, tradição de esquerda e da luta contra o
zação da cultura negra, muito comuns exigindo assim o conjunto de direitos fascismo e liberalismo. Num momen-
entre os jovens periféricos em várias trabalhistas ainda existentes. Ao mes- to de invisibilidade e ataque à própria
cidades do país e, no contexto da pande- mo tempo, articulam a formação de concepção de trabalho, a história dos
mia, gerou uma surpreendente onda de cooperativas que utilizem os mesmos trabalhadores é acionada como um ele-
mobilização dos entregadores. Os mes- instrumentos tecnológicos das grandes mento fundante de identidades, ação
mos celulares e aplicativos utilizados empresas, disputando assim o mercado coletiva e projeto de porvir.
pelas empresas para seu controle foram de entregas.
usados para a organização e combate à Foram essas as questões discuti- PAULO FONTES é professor do
dispersão e isolamento característicos das na entrevista que Paulo Galo, o Instituto de História da UFRJ e diretor
dessas relações de trabalho. emergente líder dos entregadores em da Universidade da Cidadania da UFRJ
32 ESQUERDA PETISTA #11 - Setembro 2020