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ESTUDO INTRODUTÓRIO | JOÃO QUARTIM DE MORAES


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                     O utopismo, sonho de “uma sociedade totalmente ‘outra’” (na
               fórmula concisa de Azzarà), supõe mudanças totais e absolutas, ao
               modo da criação “ex nihilo” das teologias monoteístas. Sonhar não paga
               imposto, diz um velho provérbio. Mas pode criar desastrosas ilusões.
               Quando se chocam “com a dureza da história e de suas contradições”,
               os sonhadores não costumam reagir de modo construtivo. Não se trata
               aqui das ideias utópicas que prosperam em pequenos círculos ultrar-
               revolucionários e outras seitas esotéricas, não chegando a afetar signi-
               ficamente o curso dos acontecimentos, mas da “dimensão religiosa e
               messiânica do marxismo” suscitada pela própria aspereza das lutas de
               classe; “indispensável nos processos de mobilização de massas”, essa
               dimensão teria se cristalizado ao longo “da guerra civil europeia e in-
               ternacional e do estado de guerra mundial permanente que acompa-
               nhou o processo de descolonização”. Ela teria sido, pois, não somente
               inevitável, mas também necessária.
                     Nesse caso, então, parece mais justo avaliar o imaginário das re-
               voluções do século XX com critério semelhante àquele de que Marx se
               serviu no início de O 18 de Brumário de Luís Bonaparte a propósito das
               revoluções burguesas: elas exageraram na imaginação a tarefa histórica
               que estavam cumprindo, identificando o espírito da revolução com os
               heróis de um longínquo passado. Os puritanos ingleses “transfiguraram
               miticamente a sociedade bíblica, mas não conseguiram ressuscitá-la”,
               apenas abriram caminho para o avanço das relações mercantis; os ja-
               cobinos franceses não lograram ressuscitar a paradigmática cidadania
               greco-romana, mas levaram a burguesia revolucionária ao poder polí-
               tico e garantiram a propriedade da terra aos pequenos camponeses. À
               busca, nos mitos bíblicos ou na velha república romana, de um gran-
               dioso paradigma inspirador, ele contrapõe o imaginário da “revolução
               social do século XIX, que não pode extrair sua poesia do passado, mas
               somente do porvir”.



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