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ESTUDO INTRODUTÓRIO | JOÃO QUARTIM DE MORAES
Bem mais do que a necessária aceitação de um setor capitalista
agrário, a derrota das revoluções proletárias na Europa e o cerco impe-
rialista postergaram “sine die” a perspectiva da formação do poder po-
lítico de tipo novo anunciado em O Estado e a Revolução, bem como a da
“república soviética mundial”, em vista da qual os dirigentes bolchevi-
ques tinham fundado em 1919 a Internacional Comunista.
Embora reconheça a importância desses fatores adversos, Losur-
do aponta, entre os fatores responsáveis pelos problemas de fundo não
resolvidos que acabaram levando ao desastre de 1989-1992, os efeitos
perversos da tese de que, suprimida a exploração de classe, desapare-
ceria a razão de ser do Estado, que definharia até extinguir-se. “Qual o
sentido de empenhar-se laboriosamente no processo de construção de
um Estado socialista de direito se o Estado enquanto tal está destina-
do à dissolução?”. Poder-se-ia responder que o poder soviético elabo-
rou quatro Constituições (1918, 1924, 1936, 1977), o que mostra pelo
menos empenho na formulação da legalidade socialista. Obviamente,
porém, a vigência do Estado socialista de direito (nervo da questão críti-
ca de Losurdo) não decorre automaticamente da promulgação de leis e
códigos, mas exige uma difícil e lenta construção institucional capaz de
se inscrever em profundidade na cultura política.
As situações excepcionais em que foram promulgadas as três pri-
meiras Constituições soviéticas não eram favoráveis à consolidação de
valores e garantias jurídicas. A Constituição de 1918, que fixou os prin-
cípios da nova legalidade, sofreu o impacto do “comunismo de guerra”:
conforme célebre adágio romano, a salvação da República (dos sovietes)
tornou-se a suprema lei. A de 1924, que ratificou a formação da URSS,
foi posta à prova pela contradição entre a indústria socialista e a agricul-
tura capitalista. O êxito da NEP foi incontestável, mas por isso mesmo
fortaleceu os kulaks (camponeses médios e capitalistas rurais). A inicia-
tiva de Stálin de coletivizar os meios de produção do campo, eliminando
os kulaks enquanto classe, aplicada a partir de 1929, encontrou forte
resistência, vencida com deportações em massa. Em seu imprescindível
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