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LOSURDO. PRESENÇA E PERMANÊNCIA
eles contraída, para com a experiência, ainda que breve e contraditória,
da Comuna de Paris. Hoje, pelo contrário, décadas e décadas de um
período histórico particularmente intenso, que abrange a Revolução de
Outubro, a revolução chinesa, a cubana etc., deveriam ser classificadas
como simples mal-entendidos, sem significação e sem relevância em re-
lação à “autêntica” teoria revolucionária, esta última já entregue, defi-
nitivamente, nos textos que apenas deveríamos redescobrir e repensar!
Mas o Manifesto do Partido Comunista ironiza duramente “este ou
aquele renovador do mundo” que pretende contrapor sua doutrina de
salvação à história profana, ao “movimento histórico que se desenvolve
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sob os nossos olhos” (MEW, IV, 474-475) . Cabe lembrar, a este propósi-
to, a análise desenvolvida por Engels sobre a tendência de fundo do so-
cialismo utópico: este parece encarnar-se, em última análise, na figura
do profeta que enuncia – aliás, reza – verdades fora do tempo e, com base
nelas, pretende redimir a humanidade dos erros, das contradições, das
lutas, das dores em que ela estaria imersa; nessa perspectiva, o desen-
volvimento histórico real aparece como fruto da ignorância da verdade
da salvação revelada pelo profeta; de modo que, se ele tivesse aparecido
algum tempo antes, a humanidade teria sido preservada de séculos de
erros e sofrimentos (IDEM, XIX, 191-192). Hoje também presenciamos
análogos sermões, pronunciados por intelectuais neoutopistas, segundo
os quais, se a lição, contida n’O Capital e em outros textos sagrados, ti-
vesse sido entendida em sua autenticidade, finalmente revelada – como
no exemplo dado por Engels –, a humanidade teria sido posta a salvo de
décadas de história e de sofrimentos. Assim, uma teoria que se define
materialista e histórica torna-se a verdade sapiencial, fora do tempo, a
salvo de qualquer tipo de contaminação mundana e material.
É possível e necessária uma aproximação completamente
diferente, que não separe a avaliação sobre os dois grandes pensadores
2 MEW, à qual remetem as referências de Losurdo (volumes indicados em números romanos e as páginas em nú-
meros arábicos), é a abreviação de Marx-Engels-Werke, as obras de Marx e Engels, em 44 volumes, publicadas a partir
de 1956 em Berlim: Dietz-Verlag, pelo Institut für Marxismus-Leninismus do Partido Socialista Unificado (SED) da
República Democrática Alemã (NE).
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