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MARX, CRISTÓVÃO COLOMBO E A REVOLUÇÃO DE OUTUBRO | DOMENICO LOSURDO
nalmente a miscigenação, os casamentos e as relações sexuais mistas
que ameaçariam a pureza e a supremacia da raça branca.
Poder-se-ia dizer que o novo continente descoberto pela Revo-
lução de Outubro é o homem como tal, para além de qualquer discri-
minação de raça, censo, ou gênero, o indivíduo universal, considerado
também titular de direitos econômicos e sociais. Uma conclusão de cau-
sar espanto para os acostumados a ver no individualismo um sinônimo
da tradição liberal. Porém, a história dos países cuja tradição liberal é
mais radicada está interligada de modo inextricável com a história do
instituto da escravidão: um dos primeiros atos de política internacional
da Inglaterra liberal originada pela Revolução Gloriosa de 1688-1689 foi
romper, com o Tratado de Utrecht, o Asiento, o monopólio espanhol do
tráfico negreiro; dever-se-ia conhecer também o fato de só em 1865 ter
sido abolida nos EUA a escravidão dos negros, os quais, por outro lado,
mesmo depois disso, continuaram submetidos a formas de servidão ou
semisservidão.
As rígidas cláusulas de exclusão que caracterizam a tradição li-
beral e impedem a emergência do indivíduo universal haviam sido pos-
tas em discussão pela onda revolucionária jacobino-bolchevique. Quem
representa melhor o “individualismo”? O jacobino negro Toussaint
Louverture que, ao levar a sério a declaração dos direitos do homem,
liderou a revolução dos escravos de São Domingos (“nenhum homem,
vermelho, preto ou branco que seja, pode ser propriedade de seu seme-
lhante”), ou Napoleão Bonaparte (cujo golpe de Estado – pelo menos
inicialmente – foi saudado e apoiado no ambiente liberal francês) que
tenta reintroduzir a escravidão (“sou para os brancos, porque sou bran-
co; não há outra razão além desta, mas esta é a boa”) ? Por isso Lênin
4
conclamou os “escravos das colônias” a quebrarem suas correntes, ao
passo que Mill e seus partidários na Inglaterra ou na França preconiza-
vam a “obediência absoluta” das “raças” assim ditas “menores”. Querer
4 Citado em GAUTHIER, F. Triomphe et mort du droit naturel en révolution, Paris, PUF, 1992, p. 282.
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