Page 57 - O Que Faz o Brasil Brasil
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Todas as sociedades alternam suas vidas entre rotinas e ritos,
trabalho e festa, corpo e alma, coisas dos homens e assunto dos
deuses, períodos ordinários — onde a vida transcorre sem problemas
— e as festas, os rituais, as comemorações, os milagres e as ocasiões
extraordinárias, onde tudo pode ser iluminado e visto por novo prisma,
posição, perspectiva, ângulo...
Vivemos sempre entre esses momentos, como passageiros que
estão saindo de um evento rotineiro para a ocorrência fora do
comum que, por sua vez, logo pode tornar-se novamente rotineira e
fazer parte da paisagem do nosso irreflexivo cotidiano.
A viagem da rotina para o extraordinário, porém, depende de
uma série de fatores. Ela pode variar de sociedade para sociedade e
pode ser realizada tanto coletiva quanto individualmente. Nossa
biografia se faz precisamente pela alternância de situações que foram
esquecidas com situações que “guardamos” como tesouros ou
cicatrizes em nossa cabeça e que formam o que denominamos
“memória”. De fato, tal idéia traduz, de maneira muito precisa,
essa verdadeira dialética entre o que é lembrado com saudade
como maravilhoso, formidável ou poético, ao lado de tudo que foi
vivido como doloroso, trágico e ruim (aquilo que na nossa existência
entra como extraordinário, positiva ou negativamente valorizado), e
os outros eventos que simplesmente não são lembrados, perdendo-se
nas sombras do passado e do tempo vivido e jamais recuperado. Há,
pois, um tempo lembrado, que vira memória e saudade; e um tempo
simplesmente vivido, que se vai e morre na distância do passado.
As sociedades e os grupos fazem coisas parecidas. E a memória
social (isso que vulgarmente se chama “tradição” ou “cultura”),
que é sempre feita de uma história com H maiúsculo, é também
marcada por meio desses momentos que permitem alternâncias
certas entre o que foi concebido e vivido como rotineiro e habitual e
tudo aquilo que foi vivenciado como crise, acidente, festa ou
milagre. Pois o homem é o único animal que se constrói pela