Page 6 - TUTELA DE URGÊNCIA E TUTELA DA EVIDÊNCIA, Luiz Guilherme Marinoni, Ed. RT, 2017
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Tutela de Urgência e Tutela da Evidência - Edição 2017
PARTE I - TÉCNICA PROCESSUAL E TUTELA DOS DIREITOS
PARTE I - TÉCNICA PROCESSUAL E TUTELA DOS DIREITOS
1. Do processo neutro ao processo adequado à tutela dos direitos
A necessidade de isolamento do direito processual em face do direito material, levou a doutrina a
afastar das suas preocupações a principal finalidade da jurisdição: a tutela dos direitos.
A escola processual italiana do início do século XX teve o grande mérito de reconstruir o processo
a partir de bases publicistas, mas iniciou a história que permitiu ao processo se afastar
perigosamente dos seus compromissos com o direito material. A ação abstrata, preocupada – de
maneira excessiva – em se despir de toda e qualquer mancha de direito material, não se ligou a
qualquer forma processual que pudesse indicar uma relação do processo com as necessidades do
direito material. A escola italiana clássica não só negou à ação qualquer vínculo com um
procedimento que pudesse apontar para as necessidades do direito material, como também
organizou as formas processuais que necessariamente deveriam estar ao redor da ação a partir de
critérios unicamente processuais.
Seguindo a lógica da “neutralidade” em relação ao direito material, que já caracterizava a ação –
posta no centro do sistema processual –, os processualistas imaginaram que deveriam criar um
universo de sentenças igualmente abstrato. Tal lógica supunha que a resposta jurisdicional ao
direito de ação também deveria ser isenta em relação ao plano do direito material. Por essa razão, as
sentenças obviamente não foram vistas como tutela aos direitos, ou como instrumentos capazes de
propiciar a tutela dos direitos, mas apenas como provimentos de fecho do processo.
Pensou-se que o processo poderia existir sem qualquer compromisso com o direito material e
com a realidade social. Porém, como não é difícil constatar, houve uma lamentável confusão entre
autonomia científica, instrumentalidade do processo e neutralidade do processo em relação ao direito
material. Se o direito processual é cientificamente autônomo e o processo possui natureza
instrumental, isto está muito longe de significar que ele possa ser neutro em relação ao direito
material e à realidade da vida. Aliás, justamente por ser instrumento é que o processo deve estar
atento às necessidades dos direitos. 1
O mais grave é que a pretendida indiferença do processo em relação ao direito material faz com
que o sistema jurídico, que obviamente depende do processo para que as normas sejam atuadas e os
direitos sejam efetivados, não tenha a possibilidade de atender às necessidades reveladas pelo
direito material. Ora, os institutos do processo dependem da estrutura não apenas das normas que
instituem direitos, mas também das formas de proteção ou de tutela que o próprio direito substancial
lhes confere.
No Estado constitucional, pretender que o processo seja neutro em relação ao direito material é o
mesmo que lhe negar qualquer valor. Isso porque ser indiferente ao que ocorre no plano do direito
material é ser incapaz de atender às necessidades de proteção ou de tutela reveladas pelos novos
direitos e, especialmente, pelos direitos fundamentais.