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Ele não tem nada a ver comigo. Por que deixam gente assim entrar num shopping?
Riam, cutucavam e apontavam por medo do que viam nele — de si mesmas.
São hipóteses, apenas. Uma tentativa de entender — de pensar e de escrever em vez de
responder com violência à violência que presenciei. E que me aniquila tanto quanto um
massacre reconhecido no noticiário como massacre.
Talvez não seja nada disso. No Natal minha filha me deu de presente uma camiseta em que
a Mafalda, a personagem do cartunista argentino Quino, dizia: “E não é que neste mundo
tem cada vez mais gente e cada vez menos pessoas?”. Talvez ali, no corredor do shopping,
não fossem pessoas — só gente. Porque nascemos gente — mas só nos tornamos pessoas
se fizermos o movimento.
17 de janeiro de 2011
A melhor pior
praia do mundo
A cada ano meu pai vai silenciando. E minha mãe se tornando mais falante, como se as
palavras tivessem o poder de pregá-la à vida. Ele vai se tornando mais lento, um passo
estudado de cada vez. E ela desafia as leis da medicina com seus joelhos gastos e seus pés
de dedos tortos que saltitam pela casa e, sempre que possível, escapam para a rua. Cada
dedo do pé da minha mãe parece querer avançar mais rápido que o outro, então se
amontoam, como numa cena dos Três Patetas.
Sempre achei que os pés das pessoas contam tanto delas quanto o rosto. Os pés do meu
pai se esparramam sólidos e largos, querendo estar sempre certos de onde pisam. E os da
minha mãe se adiantam, curiosando, querem andar não importa para onde. E não raro se
enfiam em buracos de onde ela os arranca recitando palavrões de lavra própria.
Passei a última semana com meus pais naquela que, para mim, será sempre a melhor pior
praia do mundo. De repente, meu olhar foi capturado pelo andar de cada um. É perto de um
milagre que eles andem juntos há quase 60 anos com esses pés descombinados. Percebi o
quanto nós todos, seus filhos e netos, precisamos que eles reeditem esse desconcerto dos
pés.