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de volta, meio sobressaltado com a interrupção: “É muito boa, sim!”. E desandamos a rir. E
        eu choro.

          A outra cena é de minha mãe. Desde que ela ganhou um laptop dos filhos, desdenha todos
        os outros tipos de comunicação. Lá vem ela caminhando pelas bordas dos pés, meio de lado,
        como é o seu estilo, meio sabendo que interrompe a minha leitura, mas sem conseguir

        resistir a compartilhar a brincadeira que acaba de lhe chegar por e-mail. Tu conheces a
        mágica do 111? Não, eu não conhecia. Então pega os últimos dois algarismos do teu ano de

        nascimento — 66 — e soma com a idade que vais fazer neste ano — 45.
          Eu não sou muito boa em matemática, mas consigo. E ela quase dá pulinhos de alegria.
        Testamos juntas vários nascimentos e aniversários e, incrível, sempre dá 111. Ela passa então

        o resto do dia em um animado balé com seus pés problemáticos, satisfeitíssima com a mágica
        do 111. Feliz como no tempo em que trepava nos pés de laranja da chácara do pai para

        roubar fruta verde. Eu a observo, com respeito máximo pela conquista do povo egípcio e por
        tudo o que significa para o mundo inteiro. E ao mesmo tempo meio envergonhada, porque
        naquele meu canto acanhado de planeta, na melhor pior praia do mundo, o acontecimento

        mais importante daquele dia foi testemunhar minha mãe saltitando de ladinho por causa do
        111.

          Aperto a minha filha com força antes que ela parta rumo ao Rio de Janeiro e, como sempre,
        me surpreendo sobre como é possível amar tanto assim um outro ser humano. Afofo seus
        pequenos pés que ela afirma serem em forma de raquete. E aceito que, pela lógica, seja ela

        a primeira a partir para longe. Nós que ficamos não compreendemos bem como ela pode
        preferir Ipanema e Leblon à melhor pior praia do mundo. Mas, por amor, fingimos entender.

          Deste lugar geográfico-sentimental, fazemos de conta que o tempo não avança, enquanto
        com o canto dos olhos cada um de nós anota mentalmente as marcas que assinalam nosso
        corpo e também os daqueles que amamos. Registramos, mas não contamos para ninguém.

        Para o ano que vem esperamos um novo par de pezinhos gorduchos e ainda sem nome, um
        bebê novo que acolheremos. Ele mal saberá onde está enquanto engatinha sua vida nova

        pelo assoalho, sem adivinhar que a melhor pior praia do mundo já crava nele suas unhas de
        areia.
                A vida é mais intensamente isso do que todo o resto. Essa nossa capacidade de fingir

               desconhecer que um dia essa casa será alugada para outros, porque nossos pés já não
           andarão por esse mundo. Resistimos. E, cheia de medo, eu tento algemar com palavras o
                                                                  que já não alcanço capturar de outro jeito.

          Se me perguntarem agora o que eu desejo para o próximo verão, com toda a fome do meu
        querer, é isto: perseguir com os olhos os cada vez mais lentos passos do meu pai por esse
        mundo. E observar os dedos dos pés de minha mãe se atropelarem na pressa de chegar a

        algum lugar que ela nunca soube bem onde fica.
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