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O que viemos averiguar, nós que moramos longe, é se continuam andando no seu modo
improvável. Meu pai cada vez mais lento, minha mãe cada vez mais rápida, encontrando-se
em algum lugar dessa distância entre dois pontos. Acabo divagando se meu irmão do meio
não se tornou físico para compreender a trajetória destituída de lógica que é o caminhar
desordenadamente sincronizado de nossos pais.
Visitá-los nessa praia que eles amam se tornou um destino sólido de nossos verões. Não
importa que, para nossa decepção, o mar pareça imune ao aquecimento global e mantenha
a temperatura constante de iceberg. Nem que os ventos sigam varrendo largas porções de
areia e às vezes também os bichos sarnentos e desavisados que por lá vagam por falta de
rumo. A cada início de ano nós sabemos que o vizinho se tornará um flagelo com seu cortador
de grama às sete horas da manhã de cada dia. E quando não for o cortador de grama será
alguma outra máquina infernal que ele prefere pilotar sempre de manhã bem cedo ou logo
depois do almoço. Também temos certeza de que as dúzias de guaipecas não nos darão
trégua latindo ao mesmo tempo e o tempo todo.
Estamos cientes de que ninguém vai dormir nas noites de sábado para domingo, porque
uma romaria de adolescentes celerados vai passar diante da nossa casa estourando as caixas
de som, como um triste rito de passagem num mundo em que todos os rituais soam como
um reality show de má qualidade. Que algum problema sempre vai ocorrer com a água, que
desta vez faltou por três dias, mas poderiam ser mais. Que o único mercado cobrará preços
tão abusivos que cogitaremos deixar um naco do rim na hora de acertar a caderneta. E a
marca de cerveja será sempre a pior possível. Mas resistimos, porque a melhor pior praia do
mundo tem suas garras de areia cravadas no nosso coração.
Todo ano, mal boto meus pés descalços no chão e já vou jurando que é a última vez que
piso naquela praia insana. E no dia seguinte a verdade me atinge. Sei por que vim. E sei que
continuarei vindo. Volto ano após ano para ter certeza de que tudo continua exatamente
igual. Ainda que às vezes insuportavelmente igual.
Neste verão, duas cenas cavoucaram minha alma com uma daquelas pazinhas de criança
esquecidas na areia e se instalaram para ficar. Lá está meu pai. Depois de um acurado estudo
sobre o rumo dos ventos, em que ele anda para lá e para cá apalpando as nuvens com os
olhos, meu pai posiciona uma cadeira e uma dessas mesas ordinárias de plástico exatamente
onde a brisa circula sem obstáculos. Lá ele se senta com alguma de suas preciosidades. Neste
ano o primeiro livro sobre a história do Brasil escrito por um brasileiro, Frei Vicente do
Salvador, datado do início do século 17. Só interrompe essa leitura para esmiuçar o jornal,
de onde recorta as melhores partes. Não há tecnologia que o convença que recortar o jornal
com tesoura não siga sendo a melhor maneira de organizar um arquivo. Eu o espio da minha
rede e, a certo momento, não consigo evitar. Grito: “Pai, a vida é boa, né?”. E ele responde