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Qual  é  a  diferença  aqui?  A  diferença  é  Natascha  Kampusch.  Para  surpresa  de  seus
        conterrâneos e do mundo inteiro que disputava sua história (às vezes inventando detalhes

        sórdidos por achar que os verdadeiros ainda eram poucos), Natascha recusou-se a ocupar o
        lugar reservado a ela no espetáculo — o de vítima eterna.
          Sim, ela dizia, eu fui uma vítima, mas isso não é tudo o que sou. Sim, Wolfgang Priklopil é

        um sequestrador e um criminoso, mas não é um monstro. “A simpatia oferecida à vítima é
        enganadora”,  escreveria  ela  mais  tarde.  “As  pessoas  amam  a  vítima  apenas  quando  se

        sentem  superiores  a  ela.”  Natascha  lutou  para  que  não  fizessem  dela  um  produto  de
        consumo em um show freak. Obviamente, perdeu logo a simpatia do público, que em muitos
        casos  se  transformou  em  ódio  e  ameaças  pela  internet.  Chegou  a  ser  acusada  de

        cumplicidade e de ganhar dinheiro com a tragédia. Como assim, aquela menina loira e de
        olhos  azuis,  que  deveria  agradecer  comovida  a todas  as  manifestações  de  solidariedade

        vindas de todos os cantos, ousava destruir a fábula moderna da cobertura midiática?
          Pois ela ousou. E é por isso que seu livro 3096 dias — A impressionante história da garota
        que ficou em cativeiro durante oito anos, em um dos sequestros mais longos de que se tem

        notícia (Verus Editora) merece ser lido. Nas 225 páginas, Natascha Kampusch apropria-se de
        sua história e acerta suas contas — especialmente consigo mesma. Ao escrever a versão do

        que só ela viveu para contar, já que o outro protagonista está morto, eliminou qualquer
        possibilidade de transformarem sua vida num conto de fadas que, derrotada a fera, já teria
        o final feliz assegurado. Natascha Kampusch escolheu a vida, com todas as suas contradições,

        e não um pastiche dela. Isto quem desejava era o sequestrador.
          Natascha, que leu muito no cativeiro, se expressa bem. Não é apenas a ajuda que teve para

        escrever o livro que garante a densidade da narrativa. A capacidade dela de refletir e analisar
        o  vivido  torna-se  bem  clara  também  nas  entrevistas  que  dá  à  imprensa.  Escolhi  alguns
        trechos do livro para que nos ajudem a entender o que Natascha nos diz. É importante o que

        ela nos diz para entendermos a nós mesmos — e o nosso papel nas tragédias que se sucedem
        no noticiário e na vida.

          Natascha Kampusch começa sua narrativa escapando do mito da infância feliz. Ela não era
        uma alegre e saltitante Chapeuzinho Vermelho engolida por um lobo malvado quando estava
        a caminho da casa da avó para mais um dia perfeito. Era uma menina que tinha dúvidas sobre

        o amor dos pais (como a maioria de nós, aliás), que fazia xixi na cama apesar de já ter dez
        anos e sentia-se desconfortável com o próprio corpo gorducho. No dia do sequestro ela tinha
        conquistado a liberdade de ir sozinha à escola pela primeira vez, um trajeto de cinco minutos.

        Estava apavorada com a nova aventura, o que pode ter sido pressentido por Priklopil, um
        homem que conhecia muito bem o sentimento do medo em sua própria pele e se sentia
        totalmente deslocado no mundo exterior.
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