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crimes estão em toda parte e podem ocorrer atrás de qualquer porta do país, em qualquer
dia, e talvez só provoquem um dar de ombros ou uma indignação superficial.
Nossa sociedade precisa de criminosos como Wolfgang Priklopil para dar um rosto ao mal
e afastálo dela mesma. É preciso ver imagens desses porões para que não se vejam os muitos
lares em que a violência ergue sua face burguesa e conformista. A sociedade usa as vítimas
desses casos sensacionalistas, como o meu, para se despir da responsabilidade pelas muitas
vítimas sem nome dos crimes praticados diariamente, vítimas que não recebem ajuda —
mesmo quando pedem.
Crimes assim, como o que foi cometido contra mim, formam a estrutura austera, em branco
e preto, das categorias de Bom e Mau nas quais a sociedade se baseia. O criminoso deve ser
um monstro, para que possamos nos ver no lado dos bons. O crime deve ser acrescido de
fantasias sadomasoquistas e orgias selvagens, até que seja tão extremo que não tenha mais
nada a ver com nossa própria vida.
E a vítima deve ficar destruída e permanecer assim, para que a externalização do mal seja
possível. A vítima que se recusa a assumir esse papel contradiz a visão simplista da sociedade.
Ninguém quer ver isso, porque, caso contrário, as pessoas teriam de olhar para dentro de si
mesmas”.
A história que Natascha Kampusch escolheu contar foge de todas as simplificações. E por
isso ela pagou — e vem pagando — um preço alto. Me pergunto de onde essa garota, presa
e torturada por um homem solitário e instável durante mais de oito anos, conseguiu forças
e lucidez para continuar brigando pela integridade do que é. Não mais agora contra Wolfgang
Priklopil, mas contra todos nós, que queremos reduzi-la às necessidades de nosso voraz
apetite por vítimas. Ao nosso desespero por uma normalidade que só existe em nossas
fantasias, à categorização simplista do bem e do mal — onde todos estamos, claro, sempre
no lado do bem.
Suponho que, logo após a fuga, Natascha Kampusch tenha percebido que não podia se
deixar sequestrar novamente — agora não mais pelo criminoso de um só rosto, mas pela
sociedade que tentava aprisionála em rótulos fáceis, convenientes para todos, menos para
ela. Assumiu o preço sempre custoso da liberdade e vem tentando ditar suas próprias regras.
Algo como: “Ah, vocês esperavam ser salvos? Desculpa, mas não à custa da minha vida”.
Este livro é um manifesto de afirmação da sua identidade. Com toda a inteireza de sua
experiência. A Natascha Kampusch, meu máximo respeito. Espero que ela continue nos
mandando passear e siga com a sua vida.
21 de fevereiro de 2011