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com doces de leite e cuidou das duas galinhas que eu criava como filhas e cuja educação e
        responsabilidade repassei a ela depois que não couberam mais na minha casa de cidade. Tia

        Cristina zelou pelas minhas filhas de penas até a morte natural de uma e depois de outra, e
        mesmo quando a branca engoliu a sua corrente de ouro e todo o Barreiro insistiu que aquela
        franga desaforada estaria melhor na panela. Minha boa tia Cristina jamais magoou ninguém

        além de si mesma.
          Para jamais esquecer que a vida é tecida com sentimentos contraditórios e gentes mais

        ainda, é diante do túmulo da minha tia Cristina que ofereço um buquê de comigo-ninguém-
        pode para minha tia A., esta pelos lados da minha mãe. A distância, porque essa tia se
        encontra em um cemitério da capital, a quase 400 quilômetros dali. Apesar do nome de

        querubim, que aqui estou proibida de mencionar por decreto familiar, enquanto viveu tia A.
        urinou no túmulo do falecido que a havia traído com tanta assiduidade. Por causa desse

        péssimo hábito, meu bem-posto tio-avô deve ter negligenciado a parte da anatomia que tia
        A. passou a obrigá-lo a enxergar em seu duvidoso descanso eterno.
          Minha avó materna não visito em túmulo, porque a sinto tão presente que é quase como

        se  estivesse  ainda  por  aqui.  Tenho  sua  máquina  de  costura  bem  ao  lado  da  minha
        escrivaninha Xerife e, enquanto escrevo, ela alinhava capas de chuva feitas de saquinhos de

        leite, porque sempre achou as embalagens industrializadas uma maravilha. Muito antes de
        qualquer  conversa  ecológica,  vó  Teresinha  afirmava  que  algo  tão  bonito  não  podia  ser
        descartado como lixo e tratava de transformar logo em alguma utilidade. Sempre proseamos

        enquanto escrevo e, quando estou triste além da conta, ela me bota a cabeça em seu colo
        com cheiro de bolacha Maria e me conta uma história de Pedro Malasartes. Vó Teresinha,

        que viveu como uma santa, tinha outra por dentro. E ainda hoje, nas manhãs desmaiadas
        dos domingos, nós duas lamentamos que esta outra não tenha saído para botar ordem no
        seu mundo enquanto o tempo ainda era vivo.

          Pausando para visitas aqui e ali, meu pai, minha mãe e eu sabemos o que nos espera logo
        adiante. Meu primo Gilberto, o Beto, e a Mana, sua mulher, nos aguardam logo na descida
        da lomba com o melhor churrasco da região e cucas recheadas que desmancham na boca.

        Beto é filho da tia Nair e, na companhia querida da Mana, mantém a tradição de acolher os
        parentes  que  vêm  de  longe  e  de  perto  para  honrar  os  mortos.  Na  ocasião,  meu  primo

        também recolhe as ofertas para a festa da padroeira, quando eu divido com meu pai e meu
        irmão mais velho a doação de uma vaca. Com uma pontada de culpa porque sei que a
        malhada  vai  virar  churrasco,  mas  não  com  culpa  suficiente  para  me  converter  em

        vegetariana.
          Mas o percurso dos finados ainda não acabou. E, para mim, a visita mais importante é a
        última, ao alcançar uma mulher que não conheci, mas que permitiu que eu tudo conhecesse.

        Ela se chama Luzia de Figueiredo Neves e nasceu no ventre de um romance. Seu pai, Sabino
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