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Andrade Neves, era sobrinho-neto do General Andrade Neves, cujos feitos à frente da
cavalaria na sangrenta Guerra do Paraguai o alçou à posição de Barão do Triunfo. Enquanto
do pai de Luzia se conhece o nome e todos os sobrenomes, da mãe não restou nenhuma
letra. Era uma escrava da estância do pai de Sabino, e Luzia nasceu deste amor. Que era amor
mesmo e não a violência tão comum naquela época, praticada contra as negras por filhos de
estancieiros — e pelos próprios. Para dar nome e criar a filha, Sabino abriu mão da herança
e do conforto de sua bem-nascença. Tornou-se professor pelas lonjuras do Rio Grande e fez
da filha mestiça também professora. Da mãe, só se sabe que partiu jovem.
Quando estou diante do túmulo de Luzia, me certifico mais uma vez que a vida é desatino.
Porque não fosse essa trágica história de amor e de preconceito, que obrigou um Sabino
formado para ser general, ou pelo menos advogado na capital, a ser tornar professor e a criar
uma filha, e talvez tudo tivesse se desacomodado de outro jeito na minha pequena história.
Por isso, quando a vida se desentende com o destino e descarrila em desgoverno no rumo
do imprevisto, eu penso: talvez seja uma boa coisa... e eu acabe em lugares mais
interessantes.
Em minhas andanças pelo Brasil, ouvi de homens e mulheres das mais variadas geografias
uma expressão que atesta a finura da linguagem do povo brasileiro: “Sou cego das letras”.
Era como expressavam, em voz sentida, sua condição de analfabeto. Pois foi Luzia, com esse
nome tão profético, quem arrancou meu pai da cegueira das letras. E, com ele, todas as
gerações que vieram depois. Caçula entre os homens de uma família de 12 filhos criados no
cultivo da erva-mate, Luzia iluminou primeiro o nome do meu pai. Quando lá chegou na
escolinha do Barreiro, com os pés descalços e os largos olhos que desde pequeno carrega
como faróis, meu pai não sabia como se chamava, já que em casa e por todos era conhecido
pelo apelido. Quando Luzia chamou — “Argemiro” —, meu pai, então um guri de sete anos,
não se mexeu. Só na terceira ou quarta chamada, descobriu-se. E com o nome veio um
mundo inteiro.
Aos 12 anos meu pai foi assaltado por uma pneumonia dupla e, enquanto lutava pela vida
numa época e numa paisagem em que era mais fácil sucumbir do que escapar da doença,
meu avô sentiu-se mal depois de uma sequência de noites no soque da erva-mate e logo
mandou buscar, a cavalo, o médico e também o padre. Quando meu pai despertou, em
território dos vivos, não sabiam como contar a ele que, naquele soluço do tempo, tornara-
se órfão. Foi chamado um homem de nome Pacífico para dar a notícia, mas o mais perto que
ele chegou de cumprir sua missão, destituído que estava de toda paz, mas não de sutileza,
foi avisar ao meu pai de que dali para frente veria os irmãos com um traje de cor diferente.
Uma tia então deixou escorregar com dedos tímidos o jornal aberto sobre a mesa na página
do obituário.