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Meu pai descobriu ali que saber ler podia ser uma maldição. E naquele momento aceitou
o custo às vezes por demais elevado de compreender as letras, em algumas ocasiões com
revelações brutais, como naquele pedaço de jornal, em outras, como descobriria mais tarde,
torcidas pelo cinismo e pela má fé, com o veneno escorrendo das entrelinhas e a mentira
encarapitada nas vírgulas. Arrisco-me a dizer que meu pai escolheu ali, quando recuperava
a vida para descobrir que o pai havia perdido a sua, que existiria com verdade.
Aprendi com meu pai a honrar o presente de Luzia. E a tirar meu chapéu invisível diante
de Sabino, uma raridade de homem que, nos finalmentes do século 19, deixou posição e
riqueza para criar uma filha sozinho e lançou-se nos interiores do Rio Grande para educar os
rebentos dos colonos europeus que desembarcavam com quase nada além de esperança e
do preconceito com gente de pele mais escura, como a própria Luzia. Era ele e não seu tio-
avô que deveria ser nome de rua na capital e por todo canto se o mundo fosse justo.
Desde que me entendo por gente, meu pai coloca flores no túmulo de sua primeira
professora. Não sei dizer em que altura do caminho eu comecei a segui-lo nesse gesto, a
ponto de ter se tornado uma estrelinha no meu calendário pessoal. Não necessariamente no
dia de finados, mas em algum dia do ano eu preciso agradecer a Luzia pelas letras. Sento-me
à beira do seu túmulo e, depois de dizer obrigada, me enfio dentro de mim e começo a pensar
em minha vida de palavras.
É um momento de vestir minha própria pele, eu, que como repórter, estou sempre
tentando me emburacar na pele do outro. Penso se estou usando com verdade o que Luzia
me deu. Investigo se tenho sido digna e se tenho sido honesta no meu percurso não só com
os outros, mas comigo mesma. Se tenho amado bem não só os de perto, mas também os de
longe. Apaziguo-me com as batalhas que talvez não ganhe, mas que nem por isso a luta deixa
de valer a pena. Encaro o medo que muitas vezes me perfura e tento usá-lo para me tornar
mais atenta às armadilhas. E refaço meus votos de contar histórias usando o melhor que
tenho em mim. De alguma forma, acredito que Luzia sempre encontra um jeito de me
responder.
Estava nesse ponto de minhas perambulações internas, neste último 2 de novembro,
quando ouço a voz da minha mãe discutindo com o encarregado do cemitério, que não
encontrava meus últimos pagamentos em seu caderno. Minha mãe insistia que as taxas
estavam em dia, um despropósito de 15 reais por ano (!!!) para que eu tenha o direito de lá
ser enterrada quando o único acontecimento previsível da vida chegar. Eu já tinha dado uma
vistoriada na minha futura casa, reservada embaixo de uma árvore, e agora peleava para me
manter concentrada em minha conversa com Luzia, mas já começava a achar o debate
divertido. De repente, eu escuto: “Mas a Eliane é falecida há muito tempo?”. E minha mãe,
rapidíssima:
“Está bem viva, sentada ali naquele túmulo”.