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eu dizia que meu desejo era me reinventar. Hoje, passados quase cinco meses dessa
mudança, descubro que, para me reinventar, é preciso antes me desconhecer.
Foi uma surpresa para mim — como, por outros caminhos, está sendo para meus amigos
tão diferentes do início deste texto. Hoje, não basta saber quem eu sou. É preciso também
saber quem eu não sou. Para, então, saber quem eu posso ser. Vou tentar explicar melhor.
Para nos estabelecermos na vida adulta precisamos construir um personagem. Não com a
total liberdade com que muitos sonham e alguns se iludem que têm, mas com algum grau
de livre arbítrio. Embora variem as nuances do que as pessoas pensam sobre cada um de
nós, há algo que é geral, que emana desse personagem que criamos. E, aqui, quando me
refiro à personagem, não há nenhuma relação com falsidade ou simulação. É tão verdadeiro
quanto qualquer coisa pode ser verdadeira.
Na medida em que esse personagem se torna convincente, no sentido de ser bem-
sucedido na sua relação com as várias esferas sociais, ele nos dá possibilidades e também
nos tira possibilidades. Ele nos dá estabilidade, segurança, certezas, reconhecimento. Mas
ele contém em si uma armadilha. Do tipo: “Bom, então é isso o que eu sou e esta é a minha
vida, daqui em diante é só navegar”. Esse tipo de conclusão pode se tornar uma prisão se
você achar que esse personagem é tudo o que você é. Ou que tudo o que havia para ser
decidido na sua vida já está dado. Neste caso, a natureza fluida que nos habita vira cimento.
E a busca, que é a matéria que move nossa existência, termina.
O que descubro — e que tem se mostrado um caminho bem mais difícil do que eu
imaginava que seria — é a necessidade de se manter, pelo menos em parte, estrangeiro à
própria vida. Manter algo de si no vazio, uma parte de nós capaz de olhar para o todo como
terra desconhecida, aberta para o espanto de nós em nós. Ou seja: é preciso ser capaz de
olhar para nós mesmos com estranhamento para que possamos enxergar possibilidades que
um olhar viciado tornaria invisíveis. Este é o processo de se desconhecer como uma forma
mais profunda de se conhecer. Para novamente se desconhecer e assim por diante. Exige
muita coragem. Porque dá um medo danado.
Ao mudar minha vida para me reapropriar do meu tempo, um dos meus planos era me dar
ao luxo de ficar olhando para o teto, por exemplo, sem fazer nada que pudesse ser
considerado útil ou produtivo. Queria ser um pouco perdulária com o meu tempo num
sentido novo. Em vez disso, tratei de ocupar todas as minhas horas com tarefas minhas, mas
tarefas. Em vez de acordar às 6h30, como fazia quando tinha emprego e salário, passei a
acordar às 4h30. Eu tinha tanto medo do vazio que resolvi preenchê-lo todo, a ponto de
quase não dormir. Descobri que precisava abrir mão da covardia de não querer ter tempo
para tudo o que não sei o que é. Demorei meses, me angustiei bastante, mas consegui me
lambuzar de uma liberdade nova.