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A vizinha do lado percebeu que ela não mais saía de casa. Insistiu com o síndico, com o
zelador, algo estava errado. Ela nem atendia mais a porta, e um cheiro novo se impregnava
no corredor. Mas a lei não escrita da cidade grande determina não perturbar a privacidade
de ninguém. Cada um é uma ilha — ou um apartamento. Proprietário-indivíduo de seu
número de metros quadrados aéreos no mundo. Os funcionários do condomínio devem
avisar pelo interfone quando vão entregar uma correspondência que precisa ser assinada,
porque, do contrário, muitos moradores sequer abrem a porta. E ela era conhecida como “a
doutora”, o título um abismo que ela e tantos se esforçam para cavar. Ninguém ousou
perguntar se algo diferente, algo pior, estava acontecendo com ela.
Naquela tarde, a conhecida de uma associação onde ela trabalhava como voluntária veio
procurá-la, preocupada com seu sumiço. Ela então conseguiu se arrastar e sussurrar que
não tinha forças para abrir a porta. Quando a porta caiu, e os fossos foram transpostos,
descobriu-se que havia dois meses ela vivia no escuro, à luz de velas primeiro, nada depois.
A energia elétrica tinha sido cortada por falta de pagamento. Ela já não podia andar. E há
semanas quase não comia. A doutora estava morrendo de fome em meio a centenas de
pessoas na cidade de milhões. Em sua própria sujeira.
Num prédio de classe média de São Paulo, ela estava mais isolada do que qualquer
ribeirinho dos confins da Amazônia. Não queria que descobrissem que havia perdido o
controle da sua vida. E quando quis pedir ajuda, já não teve forças. Imagino quanto
desespero sentia para conseguir romper as amarras de toda uma existência, se arrastar até
a porta e admitir que não era mais capaz de abrir. Foi levada ao hospital, onde agora briga
para viver.
Ela morava dois andares abaixo do meu. Quando eu soube, fiquei rememorando os últimos
meses. Enquanto eu trabalhava, cozinhava, bebia vinho, tomava chimarrão, gargalhava,
assistia a filmes, me emocionava com livros, me indignava com acontecimentos, conversava,
namorava, sonhava, fazia planos, escrevia esta coluna e às vezes chorava, dois andares
abaixo do meu, num espaço igual ao meu, uma mulher de 82 anos morria de fome nas trevas,
em abissal solidão.
Enquanto eu ria, ela morria. Enquanto eu comia, ela morria. Enquanto eu sonhava, ela
morria. No escuro, ela morria no escuro enquanto eu abanava da janela, o velho sorria ao
sol, uma vizinha tentava me vender um novo creme antirrugas e Pedrão rosnava cegamente
no elevador sob o olhar terno de seu gigante.
Não consegui dormir por algumas noites, porque me via arremessada ao outro lado da rua,
tentando adivinhar os enredos que se passavam atrás das cortinas daqueles outros 69
apartamentos. Que vidas são aquelas, que dores se escondem, quais são os dramas que sou
impotente para estancar? Anos atrás, antes de eu morar no prédio, um homem se lançou