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No  velório,  ela  se  surpreendia  olhando  no  relógio  para  ver  se  não  estava  na  hora  da
        mamadeira. Só então se dava conta de que era seu bebê que estava no caixão.

          Minha irmã esteve neste mundo, de fato, por cinco meses — mas sua morte vive com
        minha mãe e com todos nós há quase cinco décadas. Eu fui a quarta e última filha. Não
        conheci minha irmã. Para mim, porém, ela sempre pareceu mais viva do que qualquer outra

        pessoa. Penso, com tudo o que sei hoje, que essa presença tão forte foi causada por um luto
        insepulto. Minha irmã morreu de meningite meningocócica. Mas o diagnóstico só chegou

        dez anos depois de sua morte. Até então, os médicos não entendiam o que a havia matado.
        De repente, tão rápido.
          Minha mãe passou anos se perguntando o que havia feito de errado. Hoje, ao conversar

        com  mães  que  perderam  seus  bebês,  percebo  que  elas  também  se  perguntaram.  E  se
        culparam. Só superaram porque tiveram a sorte de encontrar profissionais conscientes de

        seu lugar nesse luto. Uma das missões mais importantes de uma boa equipe de saúde é
        exatamente dar acesso a todos os exames e a toda possibilidade de investigação, para que
        não paire nenhuma dúvida sobre o diagnóstico. Esclarecer a causa da morte com o maior

        número de informações qualificadas é fundamental para que a perda possa ser superada. E
        que culpas infundadas não se instalem como pedras pelo resto da vida.

          Em  Ijuí,  no  início  dos  anos  60,  os  médicos  não  tinham  nenhuma  ideia  do  que  havia
        acontecido com minha irmã. E a cidade pequena, como a literatura conta tão bem, pode ser
        o mais cruel dos mundos diante da fragilidade do outro. Logo circularam pela cidade as mais

        variadas versões sobre o que tinha matado minha irmã. Em uma delas, minha mãe havia
        deixado leite estragado na mamadeira. Como se não bastasse toda a dor e as perguntas sem

        respostas, minha mãe era apontada como culpada por alguns. Permaneceu mais de um ano
        fechada em dor.
          Quando o diagnóstico finalmente chegou, já era tarde para preencher o buraco que se

        abriu dentro dela. E nós, que sobrevivemos, estávamos acostumados demais a conviver com
        uma filha para sempre perfeita que, infelizmente, nunca teve a chance de errar. A dor dos

        irmãos daquele que morre ainda é um capítulo nebuloso na história do luto. Ainda hoje, eles
        são esquecidos na hora de cuidar da família. Nasci com a missão impossível de apagar a dor
        da minha mãe, de todos. Logo eu, tão imperfeita. Passei boa parte da vida culpada por

        fracassar e sobreviver.
          Acho  que  só  agora,  depois  dessa  reportagem,  alcanço  minha  mãe.  Ela  foi  massacrada
        demais para ter a chance de sepultar minha irmã. Da forma que lhe foi possível, empreendeu

        seus  melhores  esforços  para  mantê-la  viva.  O  que  aconteceu  com  nossa  família  ainda
        acontece muito nos dias de hoje, nas pequenas e nas grandes cidades. Acontece sempre que

        a dimensão dessa perda não é compreendida ou tratada. Sempre que uma equipe de saúde
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