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O fato é que o abuso sexual está sempre muito mais perto do que gostaríamos. E, quando
        paramos  para  pensar  com  honestidade,  em  geral  conhecemos  alguém  próximo  que  foi

        abusado ou abusou. E muitas vezes nós também silenciamos.
          Em 1997, percorri o Rio Grande do Sul para fazer uma grande reportagem sobre abuso
        sexual  infantil.  Eu  não  queria  entrevistar  apenas  as  vítimas,  queria  escutar  também  os

        abusadores. Alguns na cadeia, outros seguindo a vida nas ruas. Nunca me recuperei dessa
        reportagem. Por  causa  dos horrores  que  ouvi —  e  vi.  Mas  principalmente  por  causa da

        quantidade  e  da  intensidade  da  dor.  Eu  esperava  o  sofrimento  das  vítimas.  Nada  me
        preparou para o sofrimento dos “monstros”. Não de todos, é preciso dizer. Há aqueles que
        não têm conflitos — e, portanto, não sofrem. Mesmo estes, continuam humanos.

          Encontrei abusadores despedaçados pelo que tinham feito — e pelo que tinham vontade
        de continuar fazendo. Fora a cadeia, não havia nada para impedi-los de seguir abusando. E

        alguns  deles  queriam  ser  impedidos.  A  prisão  impede  de  abusar,  mas  sem  ajuda  e
        tratamento, é muito difícil não reincidir quando saem dela. Se a estrutura de assistência às
        vítimas de abuso sexual é precária, para abusadores ela é quase nula.

          É bem difícil olhar com compaixão para um homem ou mulher que usou de sua autoridade
        e poder para abusar sexualmente de uma criança. E gozou exatamente deste poder total

        sobre a vítima, inteiramente submetida ao seu desejo. Mas acho que precisamos tentar.
        Lembro-me de ter ficado em conflito com meus sentimentos. Porque, nos casos em que foi
        possível, eu escutava a dor de ambos — da vítima e de quem a violou. Em alguns casos,

        ambos sofriam de forma atroz. Não se trata de relativizar a responsabilidade de quem abusa.
        Estou  apenas  apontando  que  pode  existir  sofrimento  nesse  percurso  —  e  não  apenas

        bestialidade, ainda que a bestialidade seja sempre humana.
          Dois abusadores me marcaram mais. Um deles era uma mulher — o único caso feminino
        que encontrei — que havia feito sexo com o filho de 14 anos. O menino estava destroçado.

        Ele me disse: “Eu queria parar a minha mãe, mas ficava com dó de dar um tapa nela. Nunca
        vou perdoar meu pai por me deixar sozinho com ela. Eu só quero morrer”. A própria mãe me

        contou que o filho fugia, que um dia o arrancou de debaixo da cama, onde havia se escondido
        dela. No caso do garoto, o sofrimento era ainda mais avassalador porque não havia como
        negar que ele sentiu desejo — ou não teria tido ereção.

          O desejo da vítima não é algo tão raro em casos de abuso. Mas é muito difícil para as
        vítimas lidar com ele sem se sentirem culpadas ou responsáveis. O abusador manipula esse
        sentimento: “Você chora, mas você está gostando”. Quando eu perguntava a essa mãe por

        que tinha infligido o incesto ao filho, ela repetia: “Eu fiz para salvá-lo”. De quê? Nem a mãe
        nem o filho sabiam dizer. Nem tinham qualquer assistência para ajudá-los a construir tanto

        esta resposta quanto uma outra trajetória.
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