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O outro abusador que nunca pude esquecer foi um adolescente de 15 anos. Ele havia
molestado sua meia-irmã de três anos. “Eu não queria machucar”, ele repetia. E talvez não
quisesse mesmo. Não sei. Enquanto entrevistava o adolescente, familiares o chamavam de
monstro. Seus pais só concordavam em um fato: preferiam que ele estivesse morto. Poucas
vezes vi alguém tão só no mundo. Se era mesmo um monstro — era um bem desamparado.
É difícil ter compaixão, eu sei. Mas há algo na história desses dois que pode nos ajudar a
ampliar nosso olhar. A mulher que violou o filho havia sido estuprada pelo próprio pai, aos
sete anos. E, depois da violência, foi retirada de casa e passou a vida trabalhando como
doméstica na casa de estranhos. O adolescente que abusou da meia-irmã fora violado aos
dois anos. No caso dele, o mesmo pai que o chamava de monstro havia abusado dele quando
era pouco mais que um bebê. E nunca foi responsabilizado por isso. Este pai era um pedófilo
que teve de deixar a vizinhança porque dava balas a garotinhas para masturbá-lo. Quando o
pai saiu de casa, a mãe culpou o filho e o enviou para a casa da avó.
Os dois abusadores que acabamos de odiar, portanto, teriam nossa compaixão se
voltássemos alguns anos no tempo. Se voltássemos à época em que eram crianças chorando
depois de terem sido arrebentadas pelos respectivos pais. A monstra seria uma garotinha
estuprada e, depois, jogada na casa de estranhos para trilhar uma vida de trabalho
doméstico infantil. O monstro seria um bebê violado também pelo pai e depois punido pela
violência sofrida ao ser separado da mãe.
Quando nos dispusemos a enxergar além da primeira camada de obviedade, os
sentimentos fáceis desaparecem. E começam os conflitos. Acredito que são os conflitos que
nos levam além.
Os pesquisadores do tema discordam sobre a relevância da repetição no quadro do abuso
sexual. Alguns dizem que é um traço frequente; outros, que nem tanto. Nos casos que
investiguei, como repórter, foi marcante. Não significa que todas as crianças abusadas, ao
crescer, serão abusadoras se não tiverem ajuda. Cada pessoa vai elaborar a violência que
sofreu — diferente para cada uma em seu significado e suas circunstâncias — de maneira
única.
É possível afirmar que, na história de uma parcela dos abusadores, há histórico de abuso
sexual na infância. Um dos pesquisadores que me ajudava na reportagem cuidava de um
caso que fora confirmado em pelo menos quatro gerações: o bisavô, o avô, o pai e agora o
filho, todos tinham sido violados e violaram sua respectiva prole. Neste caso, sempre
meninos. A esperança do psicólogo era conseguir quebrar esta linhagem de repetição com
responsabilização e tratamento.
Outro traço comum e igualmente terrível é a trajetória das mães das meninas violadas.
Parte delas também sofreu abuso na infância. Sem nunca ter recebido ajuda, ao eleger um
companheiro, escolhe inconscientemente um abusador. E, claro, não consegue proteger