Page 64 - C:\Users\Leal Promoções\Desktop\books\robertjoin@gmail.com\thzb\mzoq
P. 64

O outro abusador que nunca pude esquecer foi um adolescente de 15 anos. Ele havia
        molestado sua meia-irmã de três anos. “Eu não queria machucar”, ele repetia. E talvez não

        quisesse mesmo. Não sei. Enquanto entrevistava o adolescente, familiares o chamavam de
        monstro. Seus pais só concordavam em um fato: preferiam que ele estivesse morto. Poucas
        vezes vi alguém tão só no mundo. Se era mesmo um monstro — era um bem desamparado.

          É difícil ter compaixão, eu sei. Mas há algo na história desses dois que pode nos ajudar a
        ampliar nosso olhar. A mulher que violou o filho havia sido estuprada pelo próprio pai, aos

        sete anos. E, depois da violência, foi retirada de casa e passou a vida trabalhando como
        doméstica na casa de estranhos. O adolescente que abusou da meia-irmã fora violado aos
        dois anos. No caso dele, o mesmo pai que o chamava de monstro havia abusado dele quando

        era pouco mais que um bebê. E nunca foi responsabilizado por isso. Este pai era um pedófilo
        que teve de deixar a vizinhança porque dava balas a garotinhas para masturbá-lo. Quando o

        pai saiu de casa, a mãe culpou o filho e o enviou para a casa da avó.
          Os  dois  abusadores  que  acabamos  de  odiar,  portanto,  teriam  nossa  compaixão  se
        voltássemos alguns anos no tempo. Se voltássemos à época em que eram crianças chorando

        depois de terem sido arrebentadas pelos respectivos pais. A monstra seria uma garotinha
        estuprada  e,  depois,  jogada  na  casa  de  estranhos  para  trilhar  uma  vida  de  trabalho

        doméstico infantil. O monstro seria um bebê violado também pelo pai e depois punido pela
        violência sofrida ao ser separado da mãe.
          Quando  nos  dispusemos  a  enxergar  além  da  primeira  camada  de  obviedade,  os

        sentimentos fáceis desaparecem. E começam os conflitos. Acredito que são os conflitos que
        nos levam além.

          Os pesquisadores do tema discordam sobre a relevância da repetição no quadro do abuso
        sexual.  Alguns  dizem  que  é  um  traço  frequente;  outros,  que  nem  tanto.  Nos  casos  que
        investiguei, como repórter, foi marcante. Não significa que todas as crianças abusadas, ao

        crescer, serão abusadoras se não tiverem ajuda. Cada pessoa vai elaborar a violência que
        sofreu — diferente para cada uma em seu significado e suas circunstâncias — de maneira

        única.
          É possível afirmar que, na história de uma parcela dos abusadores, há histórico de abuso
        sexual na infância. Um dos pesquisadores que me ajudava na reportagem cuidava de um

        caso que fora confirmado em pelo menos quatro gerações: o bisavô, o avô, o pai e agora o
        filho,  todos  tinham  sido  violados  e  violaram  sua  respectiva  prole.  Neste  caso,  sempre
        meninos. A esperança do psicólogo era conseguir quebrar esta linhagem de repetição com

        responsabilização e tratamento.
          Outro traço comum e igualmente terrível é a trajetória das mães das meninas violadas.

        Parte delas também sofreu abuso na infância. Sem nunca ter recebido ajuda, ao eleger um
        companheiro, escolhe inconscientemente um abusador. E,  claro, não consegue proteger
   59   60   61   62   63   64   65   66   67   68   69