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Em unidades neonatais, é uma raridade. Se é difícil enfrentar a morte no fim da vida, o fim
        da vida logo no início é dor condenada ao silêncio. A forma que a sociedade encontra para

        mascarar seu horror é minimizar a importância dessa perda, dizendo às mães variações de
        frases como estas: “Não se preocupe, logo você vai ter outro filho” ou “Ainda bem que não
        deu tempo de se apegar, assim você supera rápido”.

          O que poucos parecem compreender é que a vida do bebê, para os pais, não começou no
        seu nascimento. Iniciou muito antes, quando aquele casal sonhou com um filho, concebeu

        sua existência. E nele depositou suas melhores esperanças e desejos de continuidade. É uma
        vida muito mais longa do que horas, dias, semanas, meses. Antes de um bebê existir como
        indivíduo, para os pais ele já é. E é da forma mais cara para os humanos — como desejo.

        Quando tudo isso é arrebentado por uma morte precoce, se a família não é bem cuidada, ela
        se arrebenta inteira.

          Para  fazer  a  reportagem,  acompanhei  famílias  nesse  processo  da  doença  e  da  perda.
        Escutei  também  mães  e  pais  depois  de  alguns  anos  dessa  tragédia  pessoal.  Queria
        compreender esse  momento para poder dar aos leitores  a dimensão da importância de

        cuidar bem do luto. E entender a diferença que a prática dos cuidados paliativos pode fazer
        nesse fim precoce da vida. O que significa para uma família sepultar um bebê e como uma

        equipe de saúde pode ajudá-la a seguir adiante.
          Na  reportagem,  contei  a  história  de  outros.  Aqui,  conto  a  minha.  Acredito  que  nós,
        repórteres,  que pedimos  aos  outros  a generosidade  de  compartilhar  suas  histórias  mais

        íntimas e dolorosas com o mundo, temos de ter a grandeza de nos expor em nossa própria
        humanidade doída. É o exercício que faço algumas vezes nesta coluna.

          Algumas  pessoas  acham  que  me  exponho  demais.  Eu  sempre  pedi  aos  outros  que  se
        expusessem demais. Não saberia como continuar fazendo esse pedido se não fosse capaz de
        retribuir a generosidade. Antes de bater na porta de alguém, faço o exercício de me colocar

        no lugar daquela pessoa. Só bato na porta concreta se concluir que seria capaz de abri-la,
        caso estivesse no lado de dentro. Não peço a ninguém algo que eu mesma não possa dar. É

        como fui riscando meus limites na profissão.
          Sou filha de uma família profundamente marcada pelo luto de uma morte precoce. Minha
        irmã, a terceira filha dos meus pais, depois de dois meninos, morreu aos cinco meses. Sobre

        esse momento, minha mãe sempre diz: “Eu chamei o pai para vê-la brincando no banho, à
        tarde. Ela batia as mãozinhas na água pela primeira vez. À noite ela estava com febre e com
        manchas pelo corpo. No outro dia, estava morta”.

          Acho que hoje, prestes a completar 75 anos, minha mãe ainda não compreende como é
        possível  perder  uma  filha  assim.  Ainda  mantém  no  rosto  aquela  expressão  confusa,  de

        alguém que, de repente, teve uma parte de si roubada com uma violência desproporcional.
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