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Acho que meu pai, à sua maneira, deu um lugar para essa morte, para o seu luto. Ele tem
        uma  caixinha  de  madeira,  com  chave,  bem  antiga,  onde  mantém  a  salvo  pequenas

        preciosidades de uma vida inteira. Dia desses descobri que lá dentro, junto com as medalhas
        do  colégio,  ele  guarda  a  participação  de  falecimento  da  minha  irmã.  Impecavelmente
        recortada e até hoje em perfeito estado, como tudo que é dele. Minha irmã é lembrança,

        parte de sua travessia.
          Ao terminar esse texto, enviei-o aos meus pais, para que me autorizassem a contar uma

        história que também é minha — mas é deles. Algumas horas depois, meu pai me ligou.
        Profundamente  comovido,  ele  queria  me  contar  um  pouco  mais.  Para  que  eu  pudesse
        alcançar. “Na noite após o enterro houve um temporal terrível em Ijuí, com raios e trovões”,

        ele disse. “Nós queríamos protegê-la e não podíamos. Ela estava lá, sozinha, e não éramos
        capazes de cuidar dela.” À beira dos 80 anos, meu pai ainda sofre com sua impotência diante

        da morte da filha. Seu bebê enterrado, debaixo da tempestade.
          Conto tudo isso aqui porque acredito que, se minha família tivesse tido a chance de ser
        bem  cuidada  na  sua  perda  e  no  seu  luto,  teríamos  sido  poupados  de  muita  dor  e

        desencontros. Ao fazer a reportagem, não pude deixar de pensar como nossa vida teria sido
        diferente se, num rasgo do tempo e do espaço, tivéssemos encontrado a pediatra Jussara

        Lima e Souza, da neonatologia do Caism, e a equipe dos cuidados paliativos.
          Destinos  são  alterados  para  melhor  quando  uma  equipe  de  hospital  compreende  que
        saúde é algo bem mais amplo do que tentar curar alguém de vírus, bactérias, tumores e

        doenças  variadas.  Infelizmente,  a  medicina  nunca  vai  conseguir  curar  tudo.  Médicos
        honestos  sabem  que  se  cura  muito  pouco  ainda.  Homens  e  mulheres,  a  cada  ano,  vão

        continuar perdendo bebês. Se, depois de todas as tentativas, não houver como salvá-los, é
        preciso compreender que, pelo menos, é possível salvar aquela família. Cuidando dela.
          Conto esta história na esperança de que, agora e no futuro, homens e mulheres possam

        ter a chance de serem compreendidos na enormidade da sua perda e fazer um luto que torne
        possível seguir adiante. Transformar a dor em algo que possa viver é parte da elaboração da

        perda.  De  certo  modo,  é  o  que  tento  fazer  aqui.  Escrevo  para  transformar.  E  sou
        transformada pelo que escrevo. Pego meu luto por tantos desencontros e o transformo em
        história contada, na esperança de dar a contribuição que me é possível para o início de uma

        mudança no nosso olhar sobre a morte. E sobre a vida.

                                                                                                   12 de abril de 2010



        10 Eliane Brum trabalhou com o tema da morte de 2008 a 2010, quando era repórter especial da revista Época, em São Paulo. Na primeira reportagem,
          acompanhou os últimos 115 dias da vida de uma mulher com um câncer incurável, assim como a rotina de uma enfermaria de cuidados paliativos. O
          trabalho está publicado em seu livro O olho da rua — Uma repórter em busca da literatura da vida real (Globo). A reportagem “O filho possível” é a última
          desta série e pode ser lida no site da revista.
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