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pela janela e morreu estatelado na laje. Como tantos o tempo todo. Um soluço apavorante
na rotina e depois o esquecimento. Como agora, nesse morrer sem sangue e sem alarde.
Numa fissura do tempo, algo que não pode mais ser oculto se revela — revelando também
o nosso medo. Portas são derrubadas, cortinas rasgadas por um corpo que se lança para o
nada, para nós. E, talvez pior, por um corpo que se esconde até ser exposto pelo cheiro da
decomposição ainda antes da morte, corroendo os muros de nossa privacidade protegida
com tanto empenho. Como a dela.
Depois, precisamos esquecer para seguir vivendo. Mas não consigo esquecer. O que
aconteceu com ela está acordado dentro de mim como um bicho. Dentro de nós também há
um condomínio onde portas se fecham, chaves se perdem e o suicida que nos habita se lança
no vazio enquanto outros em nós se decompõem em vida pela morte dos dias que não
acontecem. Mergulho, então, além dos dois que nos separavam, vários andares em mim. E
lembro-me de Mário Sá-Carneiro, escritor português: “Perdi-me dentro de mim porque eu
era labirinto. E hoje, quando me sinto, é com saudades de mim”.
Acredito que todos no prédio restaram em choque, cada um à sua maneira. Porque
ninguém percebeu a tempestade logo ali. Porque tudo se passou enquanto no avesso de
cada janela tentávamos viver. Mas também — e talvez principalmente por isso — porque a
tragédia se desenrolou no mesmo cenário onde tecemos o enredo de nossos dias.
O apartamento dela é igual ao nosso. Essa semelhança de condições e de arquitetura, de
portas e de janelas, nos provoca um incômodo difícil de dissipar. Poderíamos ser nós a
morrer de fome no escuro.
Mesmo com uma história diversa, lá no fundo cada um de nós sabe que a solidão nos
espreita. Que não estamos tão protegidos como gostaríamos. Seria mais fácil afastar nosso
horror se fosse um assassinato, uma morte por ciúme, uma violência cometida por um
psicopata. Isso está sempre mais longe. Mas não. A doutora morria logo ali, de solidão. E isso
está bem perto.
Ela não viveu uma vida à toa. Ou uma vida egoísta. Ela apenas viveu mais tempo do que a
maioria de seus amigos, que deve ter sepultado um a um. Mais tempo que os pacientes que
tantas vezes salvou, e então o consultório ficou vazio. Ela tinha bens que poderia ter vendido
quando ficou restrita a uma renda que não lhe permitia manter o padrão. Mas não tinha
mais saúde para fazer o que era preciso. Com o tempo, não conseguia mais nem caminhar
até o banco para buscar o dinheiro da aposentadoria ou pagar a conta de luz ou qualquer
outra. Lentamente, os fios de sua vida foram lhe escapando das mãos. E, no fim, quando
percebeu que precisava romper o pudor cimentado nela e pedir ajuda, já não era capaz de
andar pela casa para abrir a porta da rua e escancarar sua miséria. A doutora não queria
morrer, só não tinha forças para viver nesse mundo.