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Capítulo 6
evento como um processo não estanque, cujos efeitos seguem em curso e
se ampliando com o passar do tempo (VALêNCIO, 2014a; 2014b; ZHOURI
et al., 2016; 2017; CREADO et al., 2016). Passados dois anos, seus efeitos são
múltiplos e se sobrepõem, tendo em vista que mesmo os arranjos institu-
cionais para a gerência do desastre – até mesmo com ações prescritas pelo
MPF para a reparação dos danos aos atingidos – trazem consigo novos
problemas. Foi assim na distribuição do auxílio emergencial, foi assim com
o cadastro integrado e tem sido assim com o balcão indenizatório – os únicos
três programas da Fundação Renova com os quais os interlocutores que
estabelecemos relações nesta pesquisa tiveram contato.
Das (1995) aborda questões interessantes sobre a apropriação judicial e
burocrática do sofrimento em contextos de contaminação industrial. Se-
gundo a autora, enquanto a empresa norte-americana Union Carbide,
responsável pelo desastre em Bhopal na índia, não forneceu sequer as
informações sobre a composição dos componentes químicos que vazaram
na fábrica de pesticidas, as vítimas do desastre tiveram que transformar
todo o sofrimento desencadeado com o desastre em uma linguagem cien-
tífica para pleitear o reconhecimento judicial. Aspectos parecidos vêm
ocorrendo com os moradores afetados na foz do Rio Doce, que precisam
juntar e organizar provas que confirmem para as empresas responsáveis
pelo rompimento da barragem que sofreram algum tipo de dano.
Neste sentido, podemos afirmar que o protagonismo das empresas no
processo de gestão de crise em detrimento da participação dos atingidos
reforça o sofrimento social nos territórios. Depois da chegada da lama, o
conhecimento adquirido pelos ribeirinhos, pescadores e demais habitan-
tes da foz do Rio Doce em suas trajetórias de vida na região tem se tor-
nado obsoleto frente à necessidade de se movimentar em um ambiente
legal-jurídico que é estranho para a maioria deles.
A exigência dessas novas habilidades requeridas para “tornar-se atingido”,
como a de construir uma narrativa – de preferência alicerçada em fotos,
recibos e documentos – que comprove o dano sofrido, é um exemplo tí-
pico das dificuldades enfrentadas nesses tipos de circunstâncias, tendo
sido discutidas e denunciadas em outras situações (DAS, 1995; AYUERO
& SWISTUN, 2007; SILVA, 2010; OLIVEIRA, 2014; ZHOURI et al., 2017).
Se, por um lado, o passar do tempo conta a favor da empresa, por outro, a
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