Page 173 - LIVRO - ENCONTRO DE RIO E MAR_160x230mm
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Capítulo 6
contas de energia, de água, de material de construção, receituários médi-
cos, exames e mesmo caixas de remédios eram solicitados pelos entrevis-
tadores da Synergia às vítimas do desastre.
A situação que presenciamos foi angustiante também para nós pesquisa-
dores e amigos do casal, pois evidenciava o deslocamento das responsabi-
lidades sobre o desastre, que, naquele momento, pareciam recair sobre o
casal de ribeirinhos, como se estes estivessem tentando ludibriar as em-
presas. Dessa forma, o casal – a esposa um pouco mais do que o marido
– demonstrava claramente certo nervosismo ao responder as perguntas,
lidas através de um tablet pela funcionária da Synergia. As perguntas ob-
jetivas, centradas em um ligeiro sim ou não, evidenciavam a simplificação
da complexa realidade vivida pelo casal, acarretando, por vezes, a dificul-
dade em respondê-las.
Houve um momento ainda mais tenso na aplicação do cadastro, quando
a dona de casa não achava um documento específico pedido pela fun-
cionária da Synergia. Um tanto nervosa, a dona de casa respondeu: “Eu
tenho isso. Eu tenho. Só que eu não tô achando agora. Eu sei que eu tenho. Nós
juntamos tudo isso depois da lama.” A resposta da dona de casa ao fato de
não achar a documentação solicitada pela funcionária, o medo de não
conseguir a reparação do dano e o fato dela afirmar que após a lama teve
que organizar um conjunto de documentos e outros materiais burocráti-
cos evidenciam uma ampliação na perspectiva temporal do desastre.
A dor e o sofrimento daqueles que vivenciam diariamente os efeitos e
as alterações decorrentes do evento traumático confirmam, portanto, que
o aspecto temporal do desastre não se limita ao dia do evento traumáti-
co (SOROKIN, 1942 apud VALENCIO, 2014); ao contrário, ele se espraia
na nova rotina das vítimas, ampliando o sofrimento. Sendo assim, com-
preendemos os desastres como “acontecimentos coletivos trágicos nos
quais há perda e danos súbitos e involuntários que desorganizam, de for-
ma multidimensional e severa, as rotinas de vida (por vezes, o modo de
vida) de uma dada coletividade (ZHOURI et al., 2016, p. 50).
A nova rotina, além da interdição de atividades tradicionais e corriqueiras
na região – tais como pescar, plantar, tomar banho no rio, surfar, comer
peixe –, inclui também aprender todo um conjunto de práticas e saberes
advindo de outras ordens do conhecimento. Nesse sentido, novas habili-
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