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Capítulo 6

                    contas de energia, de água, de material de construção, receituários médi-
                    cos, exames e mesmo caixas de remédios eram solicitados pelos entrevis-
                    tadores da Synergia às vítimas do desastre.
                    A situação que presenciamos foi angustiante também para nós pesquisa-
                    dores e amigos do casal, pois evidenciava o deslocamento das responsabi-
                    lidades sobre o desastre, que, naquele momento, pareciam recair sobre o
                    casal de ribeirinhos, como se estes estivessem tentando ludibriar as em-
                    presas. Dessa forma, o casal – a esposa um pouco mais do que o marido
                    – demonstrava claramente certo nervosismo ao responder as perguntas,
                    lidas através de um tablet pela funcionária da Synergia. As perguntas ob-
                    jetivas, centradas em um ligeiro sim ou não, evidenciavam a simplificação
                    da complexa realidade vivida pelo casal, acarretando, por vezes, a dificul-
                    dade em respondê-las.

                    Houve um momento ainda mais tenso na aplicação do cadastro, quando
                    a dona de casa não achava um documento específico pedido pela fun-
                    cionária da Synergia. Um tanto nervosa, a dona de casa respondeu: “Eu
                    tenho isso. Eu tenho. Só que eu não tô achando agora. Eu sei que eu tenho. Nós
                    juntamos tudo isso depois da lama.” A resposta da dona de casa ao fato de
                    não achar a documentação solicitada pela funcionária, o medo de não
                    conseguir a reparação do dano e o fato dela afirmar que após a lama teve
                    que organizar um conjunto de documentos e outros materiais burocráti-
                    cos evidenciam uma ampliação na perspectiva temporal do desastre.

                    A dor e o sofrimento daqueles que vivenciam diariamente os efeitos e
                    as alterações decorrentes do evento traumático confirmam, portanto, que
                    o aspecto temporal do desastre não se limita ao dia do evento traumáti-
                    co (SOROKIN, 1942 apud VALENCIO, 2014); ao contrário, ele se espraia
                    na nova rotina das vítimas, ampliando o sofrimento. Sendo assim, com-
                    preendemos os desastres como “acontecimentos coletivos trágicos nos
                    quais há perda e danos súbitos e involuntários que desorganizam, de for-
                    ma multidimensional e severa, as rotinas de vida (por vezes, o modo de
                    vida) de uma dada coletividade (ZHOURI et al., 2016, p. 50).
                    A nova rotina, além da interdição de atividades tradicionais e corriqueiras
                    na região – tais como pescar, plantar, tomar banho no rio, surfar, comer
                    peixe –, inclui também aprender todo um conjunto de práticas e saberes
                    advindo de outras ordens do conhecimento. Nesse sentido, novas habili-




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