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Rita de Cássia Guimarães Melo                                 FRAGMENTA HISTORICA


                e  explorações  científicas  pelo  Brasil,   Corografia e a história das nações civilizadas,
                com  a  finalidade  de  definir  com   “(...) muito mais seria a empresa de escrever
                precisão  os  contornos  físicos  do  novo   na  província  de  Goyaz  aquele  que  não  viaja;
                País, elencar riquezas e potencialidades   perigosíssima tarefa é a de escrever na
                naturais, esquadrinhando os rios e a   mesma província aquele que vai viajando,
                topografia  das  regiões,  concentrando-  com intenção de se informar” (Cunha Mattos,
                se, sobretudo, nas regiões de fronteira,
                tendo   em   vista   as   integrações   1874). A intenção de Cunha Matos era redigir
                econômica  e  política  do  novo  Estado   a  Corografia na capital da província, onde,
                (Hermann, 2007: 30). 3                segundo ele, contava com “monumentos”, isto
                                                      é, com registros oficiais até então produzidos
           Publicada  na  Revista  do  Instituto  Histórico  e   sobre  a  situação  geográfica  e  histórica  da
           Geográfico  do  Brasil,  a  Corografia  constituiu   província. Mas “a sorte dispôs outra coisa”.
           um gênero  de escrita que “subsidiava” e   Como militar, foi convocado pela Secretaria da
           respondia  aos  objetivos  do  instituto  desde   Guerra para coibir os focos de insurreição que
           sua fundação, em 1838, proposta pelo próprio   ocorreriam no Brasil  entre os primeiros anos
           Marechal Cunha Matos. 4                    da Independência (1822), até sua morte em
           Logo na introdução, Cunha Matos lamenta    1839.
           as  condições  de  trabalho  do  intelectual  nos   Da disposição da “sorte” resultou uma escrita
           países “cultos”, onde não faltavam recursos   que, segundo o autor, nascia da inspeção ocular
           materiais, documentos, livros orientadores   e da memória, enformadas pelo “conhecimento
           do pensamento e da escrita fundamentada.   prático  e  baseado  na  experiência”  de  longos
           Dificuldades  em  nada  comparáveis  aos   anos de serviços prestados ao Império
           obstáculos impostos ao escritor, “que, no   português. Ao lhe faltarem os “monumentos”,
           centro de vastos desertos; no coração do   antes de iniciar a viagem leu e anotou os
           império do Brasil, carecendo de livros, mapas   registros dos governadores e ouvidores,
           e  informações  exatas,  se  vê  de  contínuo   os relatórios de comércio, agricultura e
           batalhando com o clima que o ameaça, e     administrativos e recorreu ao plagiário comum
           com os incômodos que o atenua, sem achar   às  narrativas  de  viagem.  Preocupado  com  a
           socorros científicos para levar avante os seus   escritura  geográfica,  não  lhe  faltaram  “fins
           desejos,  o  seu  patriotismo,  ou  pelo  menos  a   próprios d’um militar, que podia ver convertido
           curiosidade.                               em teatro de operações marciais aquele mesmo
           Se  dificultosa  era  a  tarefa  de  escrever  a   território,  que  como  filósofo  esquadrinhava”.
                                                      A  historiografia  brasileira  oitocentista  nasceu
           3  Varnhagen, em sua  História Geral do Brasil, notou,   imbricada com a literatura, “subordinada como
           num capítulo, a forte presença, no início do século XIX,   gênero literário”,  de relatos de testemunhos
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           de viajantes estrangeiros que vinham fazer negócios,   oculares  e  veio  a  constituir-se  na  expressão
           abrir casas comerciais, explorar riquezas, tentar fundar   “história-relato”,  “história-testemunho”,
           colônias,  como  Langsdorff,  desvendar  o  país.  Muitos
           deles acabaram por constituir um olhar balizado pela   característica  que  “jamais  deixou  de  estar
           cultura letrada europeia, dita civilizada, a respeito do   presente no desenvolvimento da ciência
           Brasil, sua natureza e sua gente. Eles circulavam no   histórica” (Le Goff, 1990: 76).
           âmbito da corte, pois muitos eram agentes diplomáticos
           ou vieram a serviço do Estado (Schiavinatto, 2003: 617).  A  literatura  de  viagens  constitui  um  gênero
           4  A “ausência do documento” histórico sobre a história
           do  Brasil  naquele  período  explica  por  que  o  Instituto   3   A Confederação dos Tamoios, “epopeia” publicada
           publicava tantos relatos de viagens e histórias de   por Gonçalves de Magalhães cm 1857, é bom exemplo
           vida dos homens considerados importantes para a   disso. “O poema, como sabemos, ficou mais conhecido
           história pátria. À falta de “testemunhos” sobre o fatos,   pela  marca  que  deixou  no  cânon  historiográfico
           personagens e lugares desconhecidos, “a fala autorizada   brasileiro do que pelas suas qualidades literárias. (...)
           dos viajantes” preencheria uma lacuna, tornando tais   esse intelectual, como muitos outros dos Oitocentos,
           narrativas história, uma forma de obter o maior número   reuniu  em  sua  obra  tanto  o  discurso  historiográfico
           possível de documentos relativos à História e Geografia   como a imaginação literária, sempre para a maior glória
           (Schiavinatto, 2003: 617).                 do nascente Estado” (Puntoni, 2003: 633).


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