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FRAGMENTA HISTORICA                                        Raimundo da Cunha Matos,
                                                         um português viajando pelo Sertão do Brasil

           literário, uma produção intelectual de relatos   negras e as índias que existiam eram os únicos
           que ensejam temas de análise e interpretação   objetos de ternura dos aventureiros”, que
           histórica no campo das ciências humanas    mantiveram  o  costume  de  comprar  escravos
           em geral. A produção dos viajantes durante   homens e “quase nunca mulheres [...] raras
           os séculos XIX e XX – escrita e iconográfica –   vezes entrou na província alguma mulher da
           consolidou-se  objeto de estudos e debates   sua cor”.
           historiográficos  em  vertentes  e  conteúdos   Observados sob um mesmo prisma o espaço
           diversos,  delimitados  pelas  abordagens  físico e os habitantes, Cunha Matos credita que
           teórico-metodológicas  das  relações  entre   somente um “poderoso braço” conseguiria tirar
           história e literatura. A expressão “literatura de   o “povo da apatia em que se conservava”. Ao
           viagem” data das últimas décadas do século XX   longo  do  itinerário  relaciona  as  necessidades
           e identifica “como literatura autónoma, como   da província, construindo o que se denomina
           subgénero, um espólio literário (e também   “geografia da falta”:
           cartográfico  e  iconográfico)  [...],  um  corpus
           de textos cujas balizas cronológicas situam-se   (...) falta restabelecer e restaurar a
                                                            boa-fé  nos  comerciantes;  falta obrigar
           entre os séculos XV e XIX, cuja natureza é em si   os homens ao trabalho da agricultura;
           compósita e interdisciplinar e cuja actividade é   falta compeli-los a empregarem-se
           compartida pela Antropologia, pela Geografia     na navegação; falta dar nova vida
           e pela História” (Berlinck, 2007, 11).           às  construções  de  grandes  barcas
           A  Corografia é uma compilação histórica         chatas; falta consertar e desobstruir
           do período de descobrimento e declínio           estradas e abrir outras mais direitas
                                                            e  mais  cômodas;  falta reformar  as
           das  minas  de  ouro  (1726–1732)  em  Goiás.    pontes  arruinadas; falta dar prêmio
           Cunha Matos descreve a província de Goiás,       aos maiores exportadores e tirar todos
           descoberta e povoada “por aventureiros, que      os embaraços aos importadores; falta
           só procuravam riquezas [...] ouro, só ouro”, e   abolir o direito do quinto, acabar com
           as ruínas deixadas por eles após o término do    as alfândegas ou registros internos;
           ciclo aurífero. Apesar de condenar e registrar o   repelir os índios ferozes; estabelecer
           estado ruinoso da província, ocasionado pela     postos militares, fortes sobre os rios e
           dedicação exclusiva à exploração do ouro,        abrir canais (Cunha Mattos, 1874, 195).
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           Cunha Matos avalia aquele período como o   A única maneira de a província sair do estado
           início de um processo civilizatório, uma vez   de  ruína  e  pôr-se  nos trilhos do  “progresso”
           que a província foi povoada inicialmente por   esbarrava na falta de infraestrutura. Os
           “gente rica”, paulistas e mineiros, seguidos por   caminhos ainda existentes remontavam ao
           “portugueses toscos, mas industriosos”. Como   século XVIII.
           o objetivo dos aventureiros do ouro era “chegar,   [...] criados sobre as picadas deixadas
           trabalhar, enriquecer e retornar à pátria”, não   pelos índios, reaproveitadas pelos
           se devam o trabalho de construir casas nem       pioneiros,  quase  sempre  sob  estímulo
           de estabelecer vínculos familiares. “As poucas   das autoridades. Outras vezes, e contra
                                                            a lei, diversas trilhas marginais foram
           6  Em Caminhos de Goiás, Chaul considera que o estigma   abertas, fosse para encurtar caminhos,
           da “decadência” da província atravessou o século XIX até   abreviar distâncias, fosse para fugir
           o limiar da “modernidade” no Brasil: “tudo começa com
           o ouro [...] tudo acaba também com o ouro” [...]. De Silva   à ação opressora dos Registros e
           e Souza (1812) a Cunha Mattos (1823), do Doutor Pohl   Passagens, que cobravam pesados
           (1810)  a  Saint-Hilaire  (1816),  passando  por  D’Alincourt   impostos sobre as mercadorias e
           (1818),  Burchel  (1827),  Gardner  (1836)  e  Castelnau   metais preciosos que por aí veiculavam.
           (1843)  e  chegando  aos  historiadores  contemporâneos   Desde 1733 atuava uma lei que impedia
           que tratam o período da mineração e da agropecuária   a abertura de estradas justamente para
           em Goiás, além de intelectuais  de outras cepas e   combater o contrabando (Lenharo,
           anônimos  da  escrita, a aceitação da decadência  da
           sociedade goiana no período pós-minerador é unânime   1993: 48).
           (Chaul, 1997: 34).


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