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FRAGMENTA HISTORICA                                        Raimundo da Cunha Matos,
                                                         um português viajando pelo Sertão do Brasil

                que implique uma noção de civilização   mercado,  que  detinham  o  poder  de  registrar
                demasiado vaga e pobre, em relação    os descontentamentos e as ansiedades
                aos conceitos de “sociedade global” ou   do presente no futuro, obscureceu aquela
                “formação história” (Le  Goff, 1990: 65).  economia de subsistência.
           Mas a incorporação justifica-se pela recorrência   Tal decadência significa produção incompatível
           dos termos ruína, decadência, insulamento,   com os moldes impostos pela economia de
           nas  narrativas  do  Oitocentos,  tanto  para   mercado. Imputadas por juízos externos,
           enunciar a degradação do espaço como para   as categorias decadência e isolamento são
           qualificar os moradores. Em 1819, Saint-Hilare   referências dos emissários, regularmente
           registrava o estado de  desalento em que  se   externos  e  opõem-se  diametralmente  às
           encontrava a província:                    dos habitantes. Voltados tão somente para
                Minas de ouro descobertas por alguns   o movimento progressivo e linear, aqueles
                homens audazes e empreendedores;      julgavam a decadência como contraponto de
                uma    multidão   de   aventureiros
                precipitando-se  sobre   riquezas     civilização e progresso; as populações, por sua
                anunciadas com a exageração da avidez   vez, viviam determinadas pelo tempo cíclico e
                e da esperança; uma sociedade que     pelo ir e vir das chuvas e das secas.
                ganha hábitos de ordem sob o rigor    Os aspectos do trabalho agrícola e de criação
                da disciplina militar e cujos costumes   voltados para a subsistência foram registrados
                foram  se  abrandando  pela  influência   por viajantes dos séculos XVIII e XIX,
                de clima abrasador e mole ociosidade;
                curtos instantes de esplendor e       representantes  do  Estado  –  administradores
                prodigalidade; ruínas e contristador   e  engenheiros  –,  cujos  julgamentos  tendiam
                decaimento; tal é em poucas palavras a   a desconsiderar as particularidades da região
                história da província de Goyaz.       e  dos  habitantes.  Eram  “emissários”  oficiais,
                                                      cujos  modos  de  ver  e  pensar  as  práticas  de
           Acrescenta o viajante que o decaimento da   trabalho e de vida não se coadunavam com a
           província era “mais ou menos a [situação]   “imobilidade” espaçotemporal experimentada
           de  todas  as  regiões  auríferas”.  Os  registros   pelos  habitantes  das  regiões  remotas.
           do  século  XVIII  e  final  do  XIX  reafirmam   Portanto, é à luz de matrizes recortadas das
           incessantemente o estado de “aniquilamento   teorias econômicas vigentes no século XIX
           total” da região (Saint-Hilaire, 1975: 15). Na   que é possível compreender os vereditos
           tentativa  de  caracterizar  o  estado  de  ânimo   “pessimistas” acerca dos sertanejos.
           da  população,  impressões  de  viajantes
           registradas nos relatórios dos presidentes da
           província  –  “entorpecimento”,  “prostração”   Trabalho e mercado, subsistência e ociosidade
           “decadência”,  “população  desacorçoada”,  Com  o  fim  da  atividade  mineradora,  criou-se
           convivem com sobejos louvores e promessas   a  ideia  de  um  lugar  vazio  –  “no  melhor  dos
           de enriquecimento, desde que os recursos   casos, o espaço passava por um meio vazio,
           naturais fossem devidamente aproveitados   recipiente indiferente ao conteúdo” (Lefebvre,
           por diligentes trabalhadores.              2006: 18), preenchido por discursos acerca das
           Quem  adotou  essa  categoria  explicativa   faltas, das carências impeditivas do progresso
           para o atraso da região Norte escolheu não   e da civilização, temperados com registros
           valorizar a produção agrícola voltada para   de potencialidades futuras. Sem um produto
           a  subsistência  praticada  por  indígenas  e   que a distinguisse das outras “irmãs”, a região
           homens livres e pobres. À luz de tal conceito,   permaneceu  “isolada”  numa  angustiante
           o historiador abstrai o “real” para privilegiar   procura de identidade econômica.  A falta de
                                                                                  11
           as ausências e descurar o que existe de fato.   11
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           O desejo dos que pensavam exclusivamente   de 1970-1980 está referenciada no pensamento
           numa produção agrícola direcionada para o   econômico  de  Roberto  Simonsen.  que  afirma:
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