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FRAGMENTA HISTORICA Raimundo da Cunha Matos,
um português viajando pelo Sertão do Brasil
Administradores e viajantes do XIX não viam do Estado contra a resistência dos súditos,
com bons olhos as regiões onde os modos que se descobrem como tais [...] descobrindo-
de produção cujos fins não fossem abastecer se como pagadores, como contribuintes”.
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o mercado com mercadorias agrícolas e/ No entanto, os comerciantes resistiam,
ou industriais. À agricultura de subsistência recusavam-se a reconhecer a legislação que
praticada pelos moradores associava-se a estabelecia o pagamento de taxas e impostos.
incapacidade e a falta de iniciativa para explorar O comércio era praticado sem o
o meio natural “abundante”. Nos Oitocentos, constrangimento dos impostos cobrados pelas
os escritos produzidos pelos estudiosos coletorias, cuja estrutura física e de pessoal
legitimavam suas análises interpretativas sobre era insuficiente para impedir a traficância do
as regiões afastadas do centro propulsor das gado e dos produtos derivados que saíam da
atividades voltadas para o mercado. Em razão província em direção ao Norte. Em relatório
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disso, a parte Norte da província de Goiás ficou de 1862, o presidente José Martins Pereira de
encerrada em si mesma, um centro econômico Alencastre afirmava ser impossível estancar
alhures, que lamentava as distâncias e as o “contrabando”, uma vez que as fronteiras
consequentes dificuldades de comunicação abertas da província – limitadas com seis
com o “centro” político-administrativo. outras vizinhas – exigiam policiamento
Se o declínio for associado à economia da diuturno, que não contava com recursos
província – cuja riqueza era proveniente da materiais e humanos para proceder a tamanha
produção e arrecadação de impostos –, vale vigilância. Eram recorrentes as solicitações
lembrar que o contrabando do gado cavalar dos administradores da província de Goiás por
era prática corriqueira. As coletorias eram mais polícia para dar cabo não só do tráfico de
insuficientes para coibir as saídas e entradas produtos, mas também para coibir as invasões
de mercadorias, e a grandeza territorial fazia de fazendas e arraiais, roubos de gados e
desaparecer os parcos recursos provinciais e assassinatos de autoridades, juízes, delegados.
os investimentos do governo central. Era um A traficância entre fronteiras, comum na
território “difícil de ser policiado, os hábitos província de Goiás do século XIX, continuou
e costumes de certas classes, e muito o uso ao longo do XX. Desde os tempos coloniais,
de armas de defesa, tão arraigado desde mercadorias saíam da província à revelia do
os primeiros anos” (Alencastre, 1862: 234). fisco, mesmo quando o governo central era
Por conseguinte, a força pública nunca era o primeiro interessado em coibir o “tráfico”
suficiente para dar cabo às contravenções. Os de diamantes, pedras preciosas, ouro.
sonegadores e criminosos eram acobertados Posteriormente, a traficância continuou em
contra as diligências das instituições e as pequenos bocados, acrescida dos frutos
cadeias eram ponto de fuga de criminosos. nativos, como coco babaçu, cera de carnaúba
A “integração” da região dependia da e castanhas. Não à toa o “contrabando” foi
construção de estradas, sem as quais a elevado a “princípio administrativo”, visto que
produção e o comércio permaneceriam a sistemática da prática venceu as leis e os
internalizados, dificultando o povoamento e regulamentos.
a integração dos moradores (Lenharo, 1993:
23). Clara demonstração de que dominar o 12 “Só progressivamente se passa a ver no imposto um
espaço territorial da região foi um processo tributo necessário às necessidades de um destinatário
custoso, que exigiu empenho do Estado para que transcende a pessoa do rei, isto, esse ‘corpo fictício’
que é o Estado” (Bourdieu, 1996: 95).
estabelecer e legitimar os dispositivos de 13 O hábito da sonegação vinha dos tempos do tráfico
coerção fiscal. Historicamente, naquela região, de escravos. “Na década de 1760, por exemplo, os
percebe-se a validade da afirmação de que “a requerentes das sesmarias nunca citavam o número
instituição do imposto foi o resultado de uma de seus escravos, conforme demonstram as duzentas
petições consultadas. O contrabando campeava”.
verdadeira guerra interna, feita pelos agentes Evitava-se a todo custo o pagamento do “imposto de
capitação e os dízimos” (Salles, 1992: 229).
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