Page 183 - 4
P. 183

Rita de Cássia Guimarães Melo                                 FRAGMENTA HISTORICA


           À falta de comunicação via estradas somava-      de  ouro  que  tiram  (Cunha  Mattos,
           se o “pouco pendor” dos habitantes para o        1874, 173).
           trabalho  efetivo,  pois  “os  braços  são  poucos   Pelo olhar dos descendentes da bastardia, os
           e os homens não aproveitam as vantagens da   homens livres, registra sua impressão num
           natureza”. O problema demográfico dificultava   misto de condescendência e reprovação. De
           a  ocupação  produtiva  da  terra  e  gerava  o   passagem por uma vila, encontrou um fundidor
           desinteresse da população em produzir      de “fenomenal habilidade” que, no entanto,
           excedentes, única forma de criar riquezas e   “era um poço de preguiça”. (...) “o povo de
           obter  receitas  fiscais  graças  à  circulação  de   Goiás é dotado de grandes talentos para todas
           mercadorias. Um círculo no qual os analistas   as artes: a preguiça, o contentarem-se com
           do período perdiam-se em conjecturas que   o pouco, a lembrança da nobreza e riqueza
           solucionassem os entraves econômicos em    dos seus maiores, faz que tão extraordinários
           uma província extensa, habitada por quase   benefícios  da  natureza  sejam  por  eles
           150 mil almas espalhadas em um território de   desprezados”.
           617 mil km , com menos de três habitantes por
                   2
           quilômetro.                                No  itinerário,  Cunha  Matos  extraía  dos
                Goyaz não tem população para bem      moradores as memórias dos tempos de
                povoar uma zona sequer de seu imenso   “abundância”, bem como registrava seus
                território; não tem hábitos de trabalho   clamores por melhorias das estradas por onde
                constante, pois não vê a retribuição   pudessem  comerciar os gêneros  produzidos
                imediata do labor; não sente em si    nas roças e fazendas. Sem pejo, considera
                a evolução do progresso; vive vida    que os habitantes inventavam tais “pretextos
                languida e desanimada e, prostrados   frívolos”,  com  o  objetivo  de  encobrir  a
                sobre minas riquíssimas de ouro, não   “preguiça” de trabalhar a terra: “contentam-
                possui  um  real  de  seu  (Taunay,  1876:   se com a mendicância, com o roubo, com a
                45).                                  caça dos bosques, frutos das árvores e raízes
           Segundo Cunha Matos, os homens e mulheres   da terra”.
           brancos habitantes da província de Goiás   Ao ressaltar os prodígios da natureza em
           descendiam dos primeiros povoadores e      detrimento dos meios de trabalho e do
           constituíam  uma  casta  de  “descendentes   desenvolvimento  das  forças  produtivas,  o
           bastardos”. Temendo serem confundidos com   pensamento de Cunha Matos é consoante aos
           os pretos, os livres e pobres, recusavam-se a   dos viajantes franceses, alemães e ingleses,
           trabalhar.                                 que creditavam à terra (natureza) mais valor
                Os homens livres não querem trabalhar   que aos homens produtores do espaço.
                para não se parecerem ou para não se   Ambição e trabalho, produção e mercado são
                confundirem.  Lembrados  das  antigas   conceitos balizares para comparar o mundo
                riquezas de seus maiores, sabendo     “civilizado”, o qual acreditavam representar, e
                que eles possuíam e trabalhavam                     7
                com escravos, e que os homens livres   o distante sertão.
                não se ocupavam no duro serviço da    O  olhar  do  viajante  oitocentista,  no  entanto,
                mineração,  conservam-se  em  apatia
                e ociosidade. Há bem poucos homens    7
                                                         “Destacava-se,  nessas  expedições,  um  olhar
                livres de nascimento, que trabalhem   instrumentalizado e enciclopédico a recortar, classificar,
                em lavras secas ou nos rios: os escravos,   nomear  a  natureza  brasílica,  tornando-a  específica,
                ou algum preto ou pardo liberto, são   irredutível  a  si  mesma  e,  ao  mesmo  tempo,  capaz
                os que por ventura e, em número mui   de  ser  inserida  quer  numa  geografia  do  mundo,  nos
                diminuto, extraem em o pouco metal    quadros  e  vistas.  Esse  investimento  em  dissecar  a
                que ainda aparece; e é tão desgraçada   natureza  (re)nomeava  suas  formas,  matizava  suas
                esta gente, que para dar pasto à sua   utilidades e acabava por singularizá-la perante as outras
                moleza, ou ociosidade, não trabalham   conhecidas, sem que isso implicasse a presença de um
                                                      olhar homogêneo, monolítico ou único” (Schiavinatto,
                enquanto lhe duram algumas oitavas    2003: 617).

                                                                                        183
   178   179   180   181   182   183   184   185   186   187   188