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Rita de Cássia Guimarães Melo FRAGMENTA HISTORICA
À falta de comunicação via estradas somava- de ouro que tiram (Cunha Mattos,
se o “pouco pendor” dos habitantes para o 1874, 173).
trabalho efetivo, pois “os braços são poucos Pelo olhar dos descendentes da bastardia, os
e os homens não aproveitam as vantagens da homens livres, registra sua impressão num
natureza”. O problema demográfico dificultava misto de condescendência e reprovação. De
a ocupação produtiva da terra e gerava o passagem por uma vila, encontrou um fundidor
desinteresse da população em produzir de “fenomenal habilidade” que, no entanto,
excedentes, única forma de criar riquezas e “era um poço de preguiça”. (...) “o povo de
obter receitas fiscais graças à circulação de Goiás é dotado de grandes talentos para todas
mercadorias. Um círculo no qual os analistas as artes: a preguiça, o contentarem-se com
do período perdiam-se em conjecturas que o pouco, a lembrança da nobreza e riqueza
solucionassem os entraves econômicos em dos seus maiores, faz que tão extraordinários
uma província extensa, habitada por quase benefícios da natureza sejam por eles
150 mil almas espalhadas em um território de desprezados”.
617 mil km , com menos de três habitantes por
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quilômetro. No itinerário, Cunha Matos extraía dos
Goyaz não tem população para bem moradores as memórias dos tempos de
povoar uma zona sequer de seu imenso “abundância”, bem como registrava seus
território; não tem hábitos de trabalho clamores por melhorias das estradas por onde
constante, pois não vê a retribuição pudessem comerciar os gêneros produzidos
imediata do labor; não sente em si nas roças e fazendas. Sem pejo, considera
a evolução do progresso; vive vida que os habitantes inventavam tais “pretextos
languida e desanimada e, prostrados frívolos”, com o objetivo de encobrir a
sobre minas riquíssimas de ouro, não “preguiça” de trabalhar a terra: “contentam-
possui um real de seu (Taunay, 1876: se com a mendicância, com o roubo, com a
45). caça dos bosques, frutos das árvores e raízes
Segundo Cunha Matos, os homens e mulheres da terra”.
brancos habitantes da província de Goiás Ao ressaltar os prodígios da natureza em
descendiam dos primeiros povoadores e detrimento dos meios de trabalho e do
constituíam uma casta de “descendentes desenvolvimento das forças produtivas, o
bastardos”. Temendo serem confundidos com pensamento de Cunha Matos é consoante aos
os pretos, os livres e pobres, recusavam-se a dos viajantes franceses, alemães e ingleses,
trabalhar. que creditavam à terra (natureza) mais valor
Os homens livres não querem trabalhar que aos homens produtores do espaço.
para não se parecerem ou para não se Ambição e trabalho, produção e mercado são
confundirem. Lembrados das antigas conceitos balizares para comparar o mundo
riquezas de seus maiores, sabendo “civilizado”, o qual acreditavam representar, e
que eles possuíam e trabalhavam 7
com escravos, e que os homens livres o distante sertão.
não se ocupavam no duro serviço da O olhar do viajante oitocentista, no entanto,
mineração, conservam-se em apatia
e ociosidade. Há bem poucos homens 7
“Destacava-se, nessas expedições, um olhar
livres de nascimento, que trabalhem instrumentalizado e enciclopédico a recortar, classificar,
em lavras secas ou nos rios: os escravos, nomear a natureza brasílica, tornando-a específica,
ou algum preto ou pardo liberto, são irredutível a si mesma e, ao mesmo tempo, capaz
os que por ventura e, em número mui de ser inserida quer numa geografia do mundo, nos
diminuto, extraem em o pouco metal quadros e vistas. Esse investimento em dissecar a
que ainda aparece; e é tão desgraçada natureza (re)nomeava suas formas, matizava suas
esta gente, que para dar pasto à sua utilidades e acabava por singularizá-la perante as outras
moleza, ou ociosidade, não trabalham conhecidas, sem que isso implicasse a presença de um
olhar homogêneo, monolítico ou único” (Schiavinatto,
enquanto lhe duram algumas oitavas 2003: 617).
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