Page 184 - 4
P. 184

FRAGMENTA HISTORICA                                        Raimundo da Cunha Matos,
                                                         um português viajando pelo Sertão do Brasil

           vai se transformando à medida que as       de mercadorias voltadas para os mercados
           viagens  e  expedições  científicas  tornam-  interno e externo. O sertão desconhecido e
           se predominantes. A linguagem do poeta     despovoado torna-se um território onde  o
           romântico Gonçalves Dias nos relatos de viagem   “exotismo” das populações nativas ingressa no
           pelos rios Amazonas, Madeira e Negro, entre   desenvolvimento econômico, e os habitantes,
           15 de agosto e 5 de outubro de 1861, deixa de   antes voltados para a liberdade do trabalho
           lado  o  olhar  romântico,  a  narrativa  idealista,   ocasional, tornam-se objeto de discursos
           “a tentação de enobrecer” aquelas paragens,   disciplinadores do tempo e da dedicação ao
           para  ser  predominantemente  descritivo  ao   trabalho regular.
           ressaltar as “ruínas” e o estado de “abandono”   A liberdade romântica imputada ao sertanista,
           das localidades por onde passava (Süssekind,   cujas  características  da  mestiçagem   fizeram
                                                                                    8
           1996: 94). A descrição de viagens de poetas e   dele um guerreiro de vida seminômade,
           literatos como ele, engenheiros e naturalistas   um aventureiro rebelde, faminto por novos
           de variados interesses e motivações, passa do   horizontes, transforma-se em obstáculo à
           registro idealizado para as narrativas “realistas”   civilização (Cunha, 1994: 23). No momento em
           sem, no entanto, abandonar a “tentação” de   que escreve, Cunha Matos avalia negativamente
           enobrecer a natureza e registrar fatos exóticos.  a  notória  mestiçagem  do  caboclo  sertanejo
           Ao longo dos Oitocentos, a linguagem dessas   que, por isso, era indolente, avesso ao trabalho
           narrativas caminhou para a materialização; em   e incapaz de servir como representação da
           vez dos floreios literários, das potencialidades   nacionalidade. O desejo de intervir naquela
           dos recursos naturais, centrou-se no cunho   realidade enseja registros racionais, segundo
           científico  e  institucional  das  informações   os quais a “paisagem amada” é idílica: “e,
           colhidas.                                  nesse sentido, o que o colonizador tem diante
                Entre o mar e o sertão, entre o mar e   de si não é mais paisagem, o que ele tem
                a serra, entre o mar e o indígena havia   diante de si é a mata ou o sertão bravio – e a
                um mundo novo. Este será o capítulo   ênfase aí vai na expressão bravio, porque o ato
                original da história brasileira, o cenário   realmente dignificante desse indivíduo é o do
                de outra epopeia, sem a projeção      desbravamento” (Cunha, 1994: 110). Em razão
                poética   da   outra,   ornamentada   disso, os empreendimentos governamentais
                pelos  deuses  latinos  e  pelas  letras   e  particulares,  que  visavam  desconstruir  as
                da Renascença. O mito edênico do      áreas sertanejas, passaram a nomear técnicos
                selvagem não durara um século; em seu
                lugar, apareceu o índio feroz, o senhor   e  engenheiros,  a  fim  de  que  descrevessem  e
                da terra, traiçoeiro e impiedoso (Faoro,   avaliassem as potencialidades reais e virtuais
                1994: 181).                           dos rios, da fauna, da flora e do solo úteis ao
                                                      plantio  regular  de  alimentos  e  à  criação  de
           O olhar dos viajantes privilegia os recursos   gado.
           da natureza como potenciais objetos de
           transformação para fins de produção econômica,   Durante os Oitocentos, os modos de expansão
           e os habitantes locais, como objeto de     do  território  em  sentido  leste  foram  o
           trabalho. Ao realçar os aspectos da decadência   mesmo do período colonial. De acordo com
           do interior do Brasil, os representantes oficiais
                                                         A  mestiçagem  é  considerada  pela  literatura  e  pela
           clamam por intervenção governamental,      8 história  uma  singularidade  do  Brasil,  distinta  em  sua
           bem como apontam os métodos adequados      materialização da América Latina. É uma representação
           à transformação  do homem  e da natureza   construída e realimentada por inúmeros estudiosos dos
           em  fatores  de  produção  mercantil.  Apesar   meados do século XIX até os anos de 1950 e constitui
           das  continuidades  sob  o  viés  do  exotismo,  o   um  padrão  de  referência  definidor  da  identidade
                                                      nacional brasileira iniciado com a primeira geração
           viajante é induzido a perscrutar naquelas áreas   pós-independência (1822). Os temas raça, identidade e
           os possíveis modos de fazê-las produtivas no   nação são discutidos por Leite (1976), Martins (1976),
           interior do sistema de capital e na produção   Iglesias (2000), Skidmore (1976) e Süssekind; Ventura
                                                      (1984).


           184
   179   180   181   182   183   184   185   186   187   188   189