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Rita de Cássia Guimarães Melo FRAGMENTA HISTORICA
a interpretação de Sevcenko, constituiu “uma habitantes “arraigado preconceito” contra o
guerra declarada contra a natureza” (1996: trabalho pastoril e agrícola, contra o trabalho
108). Para os observadores externos, os modos sistemático, sinônimos de rebaixamento
de vida do sertanejo não coadunavam com o social e perda de status econômico, uma vez
ideário de trabalho e de produção de “riqueza”, que não produzem recompensas imediatas,
uma vez que a ambição era considerada conduzem a região ao isolamento comercial,
“sentimento inato” e propulsor da atividade, uma vez interessados apenas pela agricultura
do trabalho e, consequentemente, da riqueza de subsistência. O desinteresse geral pela
material. Em meados da centúria, os registros produção de excedentes incomodava os
oficiais atinentes às terras ignotas passaram a homens de governo para os quais o “modelo
responsabilizar os sertanejos descendentes dos mercantil do desenvolvimento econômico [era]
bandeirantes, dos “entradeiros” intrépidos, o modelo dominante”. A construção discursiva
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pelo perene “atraso” das áreas e regiões do sobre o trabalhador nacional, os livres pobres
Brasil mais profundo. e posteriormente os libertos da escravidão,
Se, no entanto, as potencialidades do mundo como vadios e preguiçosos, foi motivada
natural por si mesmas nada significavam sem também por essa constatação empírica dos
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a intervenção humana, Cunha Matos dissocia narradores do século XIX.
o homem das condições objetivas estruturais.
Mesmo ao constatar a existência de um único A construção histórica da decadência
arado em toda a província, de lavradores que
mal “conheciam” a foice e o machado e das A visão dos contemporâneos sobre a decadência
raríssimas vezes que tenha encontrado um da região, sobre o declínio da agricultura,
trabalhador com enxada, nem por isso deixa constituiu uma impropriedade, uma vez que
de considerá-los preguiçosos e responsáveis o termo ou conceito de “decadência” carrega
pela falta de alimentos comerciáveis. Em face uma carga de subjetividade, [...] “de caráter
da exuberância da natureza e da crença de que moral, ou mesmo religioso” [...] “campo de
“a terra era a melhor possível”, a “preguiça” confusão” (Le Goff, 1990: 45). O emprego
daquela gente era-lhe “inexplicável” [...]. “As dele acarreta duas tendências históricas
desculpas de faltas de bons terrenos e de “deletérias”, na medida em que o analista
compradores é frívola, não merece atenção: não distingue o termo/conceito como um
em Goiás tudo se vende, tudo se aproveita” constructo ideológico dos contemporâneos
[...]. A fim de pôr termo ao quadro deplorável sobre si mesmos e toma “para si as ideias
de “estagnação” econômica e “abatimento” e mentalidades” do período em que era
moral da província de Goiás, Cunha Matos compreendido o conceito de decadência,
clama por “gênios empreendedores”, como isolando-a do “sistema global” e cometendo
os emigrantes brancos morigerados, e por um uma “mutilação da consciência histórica dos
governo de “braço forte”, que poriam fim ao homens do passado”. Para Le Goff,
“atraso”, sujeitando os moradores locais ao a noção de decadência talvez esteja
trabalho diligente e disciplinado. a serviço de certos tipos de história,
hoje profundamente desacreditados:
Nos escritos dos Oitocentos sobram louvores à a história política, a história linear
natureza. A atividade mineradora inculcou nos ou cíclica, a história catastrófica, e
mesmo uma concepção de história
9 A história da expansão territorial realizada pelos
bandeirantes foi escrita por Taunay, “autor da maior 10 A constituição de uma concepção transformadora do
obra do movimento expansionista, comparada a raros trabalho como atividade negativa e degradante para
movimentos de outras partes do mundo: a dimensão uma positividade terá no Brasil um longo percurso
de desbravador de territórios desconhecidos. Sua obra em meio ao qual o trabalhador será alvo de discursos
mais importante foi, sem dúvida, a História geral das realimentados cotidianamente e práticas repressivas,
bandeiras paulistas, que começou a ser publicada em com o objetivo de convencê-lo da necessidade e da
1924 e só terminou em 1950” (Abude, 1999: 76). dignidade do trabalho (Franco, 1969; Souza, 1982).
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