Page 185 - 4
P. 185

Rita de Cássia Guimarães Melo                                 FRAGMENTA HISTORICA


           a interpretação de Sevcenko, constituiu “uma   habitantes “arraigado preconceito” contra o
           guerra declarada contra a natureza” (1996:   trabalho pastoril e agrícola, contra o trabalho
           108). Para os observadores externos, os modos   sistemático,  sinônimos  de  rebaixamento
           de vida do sertanejo não coadunavam com o   social e perda de status econômico, uma vez
           ideário de trabalho e de produção de “riqueza”,   que não produzem recompensas imediatas,
           uma vez que a ambição era considerada      conduzem a região ao isolamento comercial,
           “sentimento  inato”  e  propulsor  da  atividade,   uma vez interessados apenas pela agricultura
           do trabalho e, consequentemente, da riqueza   de subsistência. O desinteresse geral pela
           material. Em meados da centúria, os registros   produção de excedentes incomodava os
           oficiais atinentes às terras ignotas passaram a   homens de governo para os quais o “modelo
           responsabilizar os sertanejos descendentes dos   mercantil do desenvolvimento econômico [era]
           bandeirantes, dos “entradeiros” intrépidos,    o modelo dominante”. A construção discursiva
                                               9
           pelo  perene  “atraso”  das  áreas  e  regiões  do   sobre o trabalhador nacional, os livres pobres
           Brasil mais profundo.                      e posteriormente os libertos da escravidão,
           Se, no entanto, as potencialidades do mundo   como  vadios  e  preguiçosos,  foi  motivada
           natural por si mesmas nada significavam sem   também por essa constatação empírica dos
                                                                           10
           a intervenção humana, Cunha Matos dissocia   narradores do século XIX.
           o homem das condições objetivas estruturais.
           Mesmo ao constatar a existência de um único   A construção histórica da decadência
           arado em toda a província, de lavradores que
           mal “conheciam” a foice e o machado e das   A visão dos contemporâneos sobre a decadência
           raríssimas vezes que tenha encontrado um   da região, sobre o declínio da agricultura,
           trabalhador com enxada, nem por isso deixa   constituiu  uma  impropriedade,  uma  vez  que
           de considerá-los preguiçosos e responsáveis   o termo ou conceito de “decadência” carrega
           pela falta de alimentos comerciáveis. Em face   uma  carga  de  subjetividade,  [...]  “de  caráter
           da exuberância da natureza e da crença de que   moral, ou mesmo religioso” [...] “campo de
           “a  terra  era a  melhor possível”, a  “preguiça”   confusão”  (Le  Goff,  1990:  45).  O  emprego
           daquela gente era-lhe “inexplicável” [...]. “As   dele acarreta duas tendências históricas
           desculpas de faltas de bons terrenos e de   “deletérias”, na medida em que o analista
           compradores é frívola, não merece atenção:   não  distingue  o  termo/conceito  como  um
           em Goiás tudo se vende, tudo se aproveita”   constructo ideológico dos contemporâneos
           [...]. A fim de pôr termo ao quadro deplorável   sobre si mesmos e toma “para si as ideias
           de  “estagnação”  econômica  e  “abatimento”   e mentalidades” do período em que era
           moral da província de Goiás, Cunha Matos   compreendido o conceito de decadência,
           clama por “gênios empreendedores”, como    isolando-a do “sistema global” e cometendo
           os emigrantes brancos morigerados, e por um   uma  “mutilação  da  consciência  histórica  dos
           governo de “braço forte”, que poriam fim ao   homens do passado”. Para Le Goff,
           “atraso”, sujeitando os moradores locais ao      a noção de decadência talvez esteja
           trabalho diligente e disciplinado.               a  serviço  de  certos  tipos  de  história,
                                                            hoje profundamente desacreditados:
           Nos escritos dos Oitocentos sobram louvores à    a  história  política,  a  história  linear
           natureza. A atividade mineradora inculcou nos    ou  cíclica,  a  história  catastrófica,  e
                                                            mesmo uma concepção de história
           9  A história da expansão territorial realizada pelos
           bandeirantes  foi  escrita  por  Taunay,  “autor  da  maior   10  A constituição de uma concepção transformadora do
           obra do movimento expansionista, comparada a raros   trabalho  como  atividade  negativa  e  degradante  para
           movimentos de outras partes do mundo: a dimensão   uma  positividade  terá  no  Brasil  um  longo  percurso
           de desbravador de territórios desconhecidos. Sua obra   em meio ao qual o trabalhador será alvo de discursos
           mais importante foi, sem dúvida, a História geral das   realimentados  cotidianamente  e  práticas  repressivas,
           bandeiras paulistas, que começou a ser publicada em   com  o  objetivo  de  convencê-lo  da  necessidade  e  da
           1924 e só terminou em 1950” (Abude, 1999: 76).  dignidade do trabalho (Franco, 1969; Souza, 1982).


                                                                                        185
   180   181   182   183   184   185   186   187   188   189   190