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FRAGMENTA HISTORICA                                        Raimundo da Cunha Matos,
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           solicitar empréstimos e sem poder bancar os   à inoperância dos homens de governo. O
           pagamentos  dos mesmos. Em  razão de tal   “efeito” de administração e o “exercício
           situação, os administradores pouco podiam   cotidiano do poder”  chegavam às comarcas e
                                                                      16
           realizar em prol das comarcas, distritos e   materializavam o poder do Estado por meio de
           termos.                                    ofícios publicados em jornais.
           Os jornais da província de Goiás publicavam   Passava-se do pessimismo à euforia na mesma
           estudos e relatórios de viajantes,  projetos   velocidade  das  publicações  periódicas,  para
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           realizados por  engenheiros e técnicos, de   em seguida caírem no esquecimento geral. A
           acordo com os quais se traçavam planos e   publicidade dos projetos vinha acompanhada
           projetos de aproveitamento dos rios onde   do   entusiasmo   dos   articulistas   que
           eram navegáveis e onde se fazia necessário   referendavam os efeitos da escrita. A propósito
           construir canais, estradas de ferro e portos.   de um projeto acerca das potencialidades dos
           Alardeados nos periódicos da região e      rios Araguaia e Tocantins, o visionário articulista
           da corte, esses estudos acabavam sendo     do jornal construiu com palavras a “maior rede
           esquecidos e substituídos por outros também   de comunicação da América do Sul”, capaz de
           não executados. Tratava-se de “projetos”,   “rivalizar”  e  quiçá  superar  as  comunicações
           um risco de água naquela realidade, que    desenvolvidas na América do Norte, nos
           não  passavam  de  escrituras  representativas   vales do Mississipi e Missouri.  Poucas eram
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           de   desejos   futurísticos.   Ideações   de   as  ponderações  sobre  a  materialidade  do
           envergadura que alimentavam os devaneios de   espaço, das tecnologias  disponíveis, dos
           “desenvolvimento”, “riqueza” “prosperidade”,   recursos  financeiros  e  humanos  que  tais
           desejos  realizados  e  difundidos  pela   projetos requeriam. O desejo de prosperidade
           “tecnologia escritural” (Hespanha, 1986: 42).  obscurecia a realidade econômica e financeira e
           Tais registros, escritos e difundidos pelos   mostrava o contraste entre empreendimentos
           jornais, criavam um efeito de realização,   e o meio que pretendiam subverter. “Esses
           o  bastante  para  alimentar  as  expectativas   contrastes,  que levaram à falência homens
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           de ação, e tornavam-se mais relevantes do   do porte de um barão de Mauá  e casas de
           que  a  realidade  das  análises  das  condições   comércio do porte de Souto de Souto, situam
           materiais de produção dos projetos traçados.   o choque entre audácia de alguns pioneiros e a
           Seus autores eram movidos pelo desejo de   resistência de uma estrutura econômica ainda
           encontrar as potencialidades da região, de   precária, viscerada dos descompassos a que a
           vencer os entraves postos pela natureza e   16   Para  Hespanha,  administração  “é  uma  prática
           pela falta de recursos monetários somados   corporizada em coisas”, como o espaço, os equipamentos
                                                      e processos administrativos, as estruturas humanas da
           das Assembleias Provinciais, as quais,  absorvidas em   administração,  o  saber  administrativo,  a  mentalidade
           assuntos  maiores,  políticos  e  parlamentares  pouco   administrativa. “Na verdade, a atividade administrativa
           cuidam tais minuciosidades” (Visconde de Uruguai,   não se esgota numa série de regulamentos ou numa
           1865: 63)                                  constelação de cargos, decorrentes da vontade
           15   As viagens científicas e administrativas empreendidas   arbitrária do poder” (Hespanha, 1986: 39).
           através do território brasileiro acentuaram-se a partir   17  Em 1932, as expectativas continuavam embasadas no
           de 1808. Nessa centúria havia uma profusão de relatos   mesmo pilar: “resolvido este problema do transporte,
           de viagens publicados em livros e jornais, cartas e   virá imediatamente o da colonização. Sem vias de
           panfletos, narrativas, cuja intenção era dar a conhecer   escoamento  fácil  para  a  produção  é  inútil  cogitar-se
           ao mundo “civilizado”, o exotismo dos usos e costumes   de  colonizar  qualquer  território”.  [...]  “Goyaz  terá  um
           das terras exploradas e de áreas ainda por explorar.   futuro grandioso; mas este depende exclusivamente
           Entre os viajantes, Abreu ressalta a proeminência do   de se facilitar a circulação do sangue da produção pelas
           barão  de  Eschwege,  seguido  mais  tarde  por  Agassiz,   largas artérias dos seus grandes rios” (Informação
           Hartt  e  Derbi  e  Martius,  considerando  em  “plano   Goyana, 1920: 11).
           inferior” as obras de Saint-Hilaire. “Dentre todos avulta   18  Irineu Evangelista de Sousa (1813–1889), conhecido
           por seu espírito genial Carlos Hartt, a quem se deve a   como o Barão de Mauá, entrou para a história do Brasil
           primeira  Geografia  física  do  Brasil,  a  inauguração  da   Império como um visionário do capitalismo industrial
           Arqueologia brasileira, estudos das línguas indígenas”   do século XIX (Cf. Caldeira, 1995 (histórico-biográfico); e
           (Abreu, 2003: 34).                         Alencastro, 2000 (estudo do comércio e comerciantes)).


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