Page 198 - As Crônicas de Nárnia - Volume Único
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nem mulher nem filho. Contudo, no mesmo ano em que o Tisroc - que ele
                  viva para sempre! - iniciou o seu augusto e generoso reinado, numa noite
                  de lua cheia, os deuses fizeram a graça de roubar-me o sono. Levantei-me
                  da enxerga e fui tomar o ar fresco da praia e contemplar o luar sobre as
                  águas. Foi quando percebi um ruído de remos na minha direção e ouvi um
                  choro miúdo. Pouco depois, a maré trazia à praia uma canoa, onde estavam
                  apenas um homem vergado de fome e sede e que parecia ter morrido havia
                  poucos  instantes  -  pois  ainda  estava  quente  -,  um  cantil  vazio...  e  uma
                  criança,  que  ainda  vivia.  Sem  dúvida,  pensei,  esses  desgraçados
                  conseguiram  salvar-se  dum  naufrágio;  por  graça  dos  deuses,  o  homem
                  matou-se de fome e sede para manter a criança viva, perecendo à vista da
                  terra. Assim, certo de que os deuses nunca deixam de recompensar aqueles
                  que socorrem os infelizes, tocado de piedade, pois este seu servo é homem
                  de coração...

                        - Pare com esses elogios em causa própria - interrompeu o tarcaã. -
                  Basta  saber  que  você  pegou  a  criança,  e  já  recebeu  com  o  trabalho  do
                  menino dez vezes mais do que o pão que lhe deu a cada dia. Isto é evidente.
                  O que interessa é o seguinte: quanto quer pelo menino? Estou cheio do seu
                  palavrório.

                        Arriche respondeu:

                        - Muito bem o disse, meu senhor: o trabalho do menino tem sido para
                  mim de inestimável valor. É importante levar isso em conta ao ajustarmos o
                  preço.  Pois,  é  claro,  se  vender  o  menino,  serei  obrigado  a  comprar  ou
                  alugar um outro, capaz de fazer os mesmos trabalhos.
                          - Dou quinze crescentes por ele - disse o tarcaã.

                        - Quinze! - bradou Arriche, com uma voz que ficava entre o ganido e
                  o  vagido.  -  Quinze  crescentes!?  Pelo  arrimo  da  minha  velhice!?  Pela
                  consolação  dos  meus  olhos!?  Não  zombe  das  minhas  barbas  grisalhas,
                  mesmo sendo o senhor um tarcaã! Meu preço é setenta.

                        Nessa altura Shasta saiu na ponta dos pés. Tinha ouvido o suficiente;
                  de  experiência  própria,  na  vila,  sabia  bem  o  que  é  uma  conversa  de
                  barganha. Chegava a adivinhar que, no fim das contas, Arriche o venderia
                  por muito mais do que quinze crescentes e  muito menos do que setenta.
                  Mas levariam horas para chegar a essa conclusão.

                        Não vá pensar que Shasta sentiu o que você sentiria, caso ouvisse o
                  seu pai negociando a sua venda como escravo. Primeiro: a vida dele já era
                  bem  parecida  com  a  de  um  escravo  e  provavelmente  o  tarcaã  o  trataria
                  melhor do que Arriche. Depois, aquela história de ter sido encontrado numa
                  canoa dava-lhe novo ânimo e certo alívio. Freqüentemente tinha remorsos
                  por não sentir afeto pelo pescador, pois sabia que um filho deve amar o pai.
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