Page 199 - As Crônicas de Nárnia - Volume Único
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Não  tendo  parentesco  com  Arriche,  tirava  um  peso  da  consciência,
                  chegando até a imaginar: “Quem sabe não serei filho de algum tarcaã... ou
                  filho até do Tisroc - que ele viva para sempre! -, ou filho de um deus?”

                        Devaneava assim, sentado na relva à beira da cabana. Duas estrelas já
                  tinham  surgido  no  céu,  embora  restos  do  pôr-do-sol  ainda  clareassem  o
                  ocidente. A uma certa distância pastava o cavalo do estrangeiro, amarrado
                  ao  anel  de  ferro  da  co-cheira  do  burro.  Como  se  vagueasse,  Shasta
                  caminhou até ele e acariciou-lhe o pescoço. O animal continuou arrancando
                  ervas, sem tomar conhecimento.

                        Uma outra idéia passou pela cabeça do menino: “Seria formidável se
                  esse tarcaã fosse um bom sujeito. Em casa dos grandes senhores há certos
                  escravos que quase não fazem nada. Usam roupas bonitas e comem carne
                  todos os dias. Quem sabe ele me levasse para a guerra e eu tivesse de salvar
                  a vida dele numa batalha; aí ele me daria a liberdade e me adotaria como
                  filho... Aí eu ia ganhar um palácio, uma carruagem e uma armadura... Mas,
                  e se ele for um homem terrível e cruel? Pode ser que me mande trabalhar
                  no  campo,  acorrentado.  Ah,  se  eu  soubesse!  Aposto  que  o  cavalo  sabe.
                  Pena que não saiba falar.”

                        O  cavalo  levantou  a  cabeça.  Shasta  tocou-lhe  o  focinho  acetinado,
                  dizendo:
                          -  Seria  tão  bom  se  você  falasse,  companheiro!  Por  um  instante
                  pensou que estava sonhando, pois, com  a  maior clareza, embora em voz
                  baixa, o cavalo disse:

                          - Eu falo.

                        Os olhos de Shasta ficaram quase do tamanho dos olhos do cavalo.

                          - Mas como é que você aprendeu a falar?

                        -  Psiu!  Mais  baixo!  Aprendi  na  minha  terra,  onde  quase  todos  os
                  cavalos sabem falar.
                        -  Onde fica a sua terra?

                        - Minha terra é Nárnia... Nárnia, a terra feliz das montanhas, dos rios,
                  dos vales  floridos, das  grutas  cheias de musgo,  das  florestas  que  vibram
                  com as marteladas dos anões. Oh, como é leve o ar de Nárnia! Uma hora lá
                  vale mais do que mil anos na Calormânia.

                        A  descrição  de  Nárnia  acabou  num  relincho  que  mais  parecia  um
                  suspiro de pesar.

                          - Como você veio para cá?

                        - Seqüestro! - respondeu o cavalo. - Roubado, capturado, como você
                  achar melhor. Não passava de um potro. Minha mãe sempre me dizia para
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