Page 197 - As Crônicas de Nárnia - Volume Único
P. 197
Por essa razão, Shasta imaginava que no Norte, além da serra, só
podia existir um fabuloso segredo, do qual o pai queria afastá-lo. Mas o
pescador nem sequer sabia onde ficava o Norte. E nem queria saber, pois
era um homem prático.
Um dia chegou do Sul um homem nada parecido com os outros que
Shasta conhecera. Montava um grande cavalo malhado, de crina
esvoaçante, com estribos e freios de prata. A ponta do elmo saía do centro
do seu turbante de seda, e ele usava uma cota de malha. Empunhava uma
lança e trazia ao lado uma cimitarra e um escudo de bronze. Seu rosto
escuro não causou a menor surpresa a Shasta, pois todos os calormanos
também são escuros. Surpresa, sim, causou-lhe a ondulada barba do
homem, pintada de vermelho-carmesim e besuntada de óleo perfumado.
Pela pulseira de ouro que o estrangeiro usava, Arriche logo viu que se
tratava de um tarcaã, isto é, um senhor de alta linhagem. Ajoelhando-se
diante do cavaleiro, o pescador acenou a Shasta para que fizesse o mesmo.
O estrangeiro pediu pousada para a noite, coisa que Arriche jamais
teria a coragem de recusar. O que tinham de melhor foi preparado para a
ceia do tarcaã; coube a Shasta, como sempre acontecia quando o pescador
recebia alguém, um naco de pão. Nessas ocasiões costumava dormir ao
lado do burro, numa cocheira coberta de palha. Como era cedo demais para
dormir, Shasta, que jamais aprendera que não se deve ouvir atrás da porta,
foi sentar-se de orelha colada a uma fenda que havia na parede de madeira
da cabana. Estava curioso para saber o que diziam os adultos. Eis o que
ouviu:
- Agora, meu anfitrião - disse o tarcaã -, quero dizer-lhe que estou
pensando em comprar-lhe esse menino.
- Meu amo e senhor - respondeu o pescador (e Shasta adivinhou que o
pai fazia no momento uma cara ambiciosa) -, que preço poderia convencer
este seu servo a vender-lhe o seu único filho? Por que preço tornar escravo
quem é carne da minha própria carne? É como diz um dos grandes poetas:
“O sentimento vale mais do que a sopa, e um filho é mais precioso que o
diamante.”
- É verdade - respondeu o hóspede com secura - mas um outro poeta
também disse: “Quem tenta enganar o sábio, já está tirando a camisa para
receber chicotadas.” Não encha essa boca murcha de mentiras. É evidente
que esse menino não é seu filho, pois o seu rosto é escuro como o meu, e o
rapazinho é claro e bonito como os malditos mas belos selvagens que
habitam as distantes terras do Norte.
- Como é certo o ditado - respondeu o pescador - que diz que “espada
não entra em escudo, mas contra o olho da sabedoria não há defesa!” Saiba
então, meu sublime senhor, que devo à minha extrema pobreza não ter tido