Page 14 - Quando chegar a primavera
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                      Ao  possuir  convicção  firme,  poucos  se  atreviam  a  alterar  seu  senso


                      estético.  Então,  cabia  a  quem  quer  que  fosse,  manter  respeito  e


                      assegurar que nenhum minúsculo detalhe estivesse em desordem. De


                      olhar suave e objetivo, Flávia não se comportava como as crianças de

                      sua  idade.  Falava  em  ritmo  compassado,  expressando  ternura


                      incomparável  no  olhar,  nos  gestos.  Havia  um  hálito  de  respeitosa


                      autoridade que poucos ousariam fingir não ver.





                          Alexandre identificava-se com Flávia. Muitas vezes, esquecia-se da


                      idade  de  nove  anos  da  pequena,  de  modo  que,  em  conversações


                      demoradas,  edificavam  quadros  mentais  de  compreensão  mútua  a

                      respeito  de  temas  variados.  Ambos  gostavam  da  literatura  e  da  arte


                      clássicas.  Aliás,  tema  preferido  entre  eles,  eram  as  exposições  de


                      esculturas,  pinturas  e  fotografias  em  museus  metropolitanos.  A


                      sensibilidade do olhar, a percepção minuciosa em busca de detalhes,

                      somadas  ao  conhecimento  aprofundado,  vertiam-se  como  alimento


                      d'alma. Desse modo, passavam horas folheando livros de consagrados


                      pintores. Vez ou outra, pálidas discordâncias, quanto a apreciação de


                      uma  ou  de  outra  obra,  rompiam-se  em  gargalhadas  e  admiração.


                      Inevitável,  ao  final  de  cada  conversa,  o  abraço  respeitoso  e  fraterno,


                      seguido  de  longa  escuta  de  músicas,  ao  estilo  clássico,  mesclando


                      palheta dupla, oboé e clarinete. As sinfonias ocupavam todas as fibras e

                      sensação de ambos, de tal maneira que, em pensamento, rodopiavam


                      contentes.





                          Túlio, demonstrava-se distante. Em matéria de estilo musical preferia

                      as  expressões  ruidosas  dos  funks  cariocas.  Mesclava  às  composições


                      frívolas,  incontinentes  doses  de  bebida  alcoólica,  cigarro  e  aventuras


                      sexuais.  No  início,  era  apenas  curiosidade,  justificada  pela  idade  de


                      vinte anos. Doze anos mais tarde, não se reconhecia, nem o olhar, nem


                      o espírito desbravador, que ousava trazer brilho e encanto, a Alexandre,


                      pelas somas de experiências. Ao contrário, observava-se camadas de


                      espessa viscosidade, quase escamosa como um réptil, que passara a

                      compor desarmônico quadro, na fisionomia que, pouco a pouco, fora


                      se  modificando.  Olhos  amarelados,  pele  ressequida,  esquálida  e


                      quebrantável  musculatura,  antes  torneada,  rosácea  e  vigorosa.  Os


                      colegas de escritório, demonstravam preocupação iminente, dado que

                      os galopes de incessante ira e ameaça, foram substituindo a clareza de


                      pensamento e a obstinação em concretizar anseios.
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