Page 25 - Leandro Rei da Helíria
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se outro dia. E tentei contá-los. (Conta pelos dedos) Um... dois... três... quatro... mas, de repente,
                  eram tantos dias que não havia dedos para eles todos, mesmo que eu contasse da mão esquerda
                  para a mão direita, da mão direita para a mão esquerda, mesmo que eu contasse as duas mãos juntas
                  e ainda os pés... Acho que se me acabaram os números, senhor! Deve ter sido isso!


                  REI: Meu pobre tonto... e eu aqui sem te poder ajudar em nada... De tanto chorar, cegaram os meus
                  olhos. De tanto pensar, tenho a memória enfraquecida. De tanto caminhar, esvaem-se em sangue os
                  meus pés... E dizer que eu sou rei...

                  BOBO: Rei?! Quem foi que aqui falou em rei? Aqui não vejo rei nenhum...

                  REI: Não provoques a minha ira, que eu ainda tenho poder para...


                  BOBO (interrompe-o): Poder? Falaste em poder? Que poder tens tu, que nem uma mísera côdea de
                  pão consegues encontrar?

                  REI: Eu sou Leandro, o rei de Helíria!

                  BOBO  (virando-se  para  a  assistência):  A  sério:  vêem  aqui  algum  rei?  Digam  lá:  vêem?  O quê?
                  Aquele?  (Aponta  para  o  rei)  Se  o  encontrassem  aí  pelas  vossas  ruas,  ou  nalgum corredor  do
                  metropolitano, não iriam a correr deixar-lhe uma  esmola no colo? Se então alguém vos dissesse
                  «cuidado que ele é rei» o que fariam? Riam à gargalhada, com certeza!


                  REI (murmura): Eu sou Leandro, o rei de Helíria...

                  BOBO (continua a falar para a assistência): É verdade que o viram há pouco ali ao fundo, gritando,
                  dando ordens, senhor do mundo! Nessa altura - há tantos anos que isso foi! -, nessa altura aquele
                  homem era rei. Escorraçado pelas filhas, mendiga agora um bocado de pão, pede por amor de Deus
                  um telhado para se abrigar das chuvas e dos ventos...

                  REI (murmura): Eu sou Leandro, o rei de Helíria...


                  BOBO (continuando a dirigir-se à assistência): E agora pergunto-vos: que foi que mudou nele? Terá...
                  outra cara? Outras pernas? Outros braços? Olhem-no bem. O que foi que nele mudou?

                  REI (murmura): Eu sou Leandro, o rei de Helíria!

                  BOBO (id.): Tinha um manto e já não tem. Tinha uma coroa e entregou-a a outros. Tinha um ceptro
                  e deixou-o em mãos alheias. Assim se faz e desfaz um rei. Assim passa o poder neste mundo...

                  REI (murmura): Eu sou Leandro, o rei de Helíria...

                  BOBO: Assim se transforma um soberano na mais insignificante das criaturas.


                  REI (cansado, canta devagar):

                                          Tive um reino, tive um manto,

                                          tive um ceptro e uma coroa,

                                          filhas que eram o meu encanto
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