Page 139 - As Viagens de Gulliver
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comecei a duvidar se me sentiria injuriado ou não. E, de fato, depois de me ter
habituado durante vários meses a ver e ouvir conversar esta gente e a observar os
objetos que me rodeavam e que lhes eram proporcionais, o horror que a
princípio senti pelo seu tamanho e aspecto foi-se desvanecendo, a tal ponto que,
se nessa altura tivesse assistido a um grupo de damas e cavalheiros ingleses, todos
aperaltados nos seus luxuosos trajes e desempenhando os seus vários papéis da
forma mais elegante, tomando ares altivos, fazendo vénias e tagarelando, sentir-
me-ia, para dizer a verdade, fortemente tentado a rir-me tanto deles como este
rei e os seus pares riam de mim. De igual modo não podia deixar de sorrir
intimamente quando a rainha me colocava sobre a sua mão frente a um espelho,
no qual as nossas figuras se refletiam, aparecendo-me numa desproporção do
mais ridículo que tenho visto; e com tudo isto comecei realmente a imaginar-me
vários graus abaixo do meu tamanho normal.
Nada me irritava e mortificava mais que o anão da rainha, que, sendo da
estatura mais baixa que jamais existiu neste país (pois estou convencido de que
ele não chegava a atingir os trinta pés de altura), se tornou tão insolente por ver
uma criatura ainda mais pequena que ele, que se pavoneava e empertigava todo
sempre que passava por mim na antecâmara da rainha, quando me encontrava
sobre alguma mesa, conversando com os cavalheiros e as damas da corte; e era
rara a vez que ele não me lançasse um remoque ou dois sobre a minha pequenez,
contra o que eu apenas me podia vingar chamando-lhe irmão e desafiando-o
para uma luta corpo a corpo, assim como outras réplicas habituais na boca dos
pajens da corte. Um dia, ao jantar, esta maliciosa criatura ficou tão ferida com
alguma coisa que eu lhe disse que, subindo pelo braço da cadeira de Sua
Majestade e apanhando-me desprevenido, agarrou-me pela cintura e deixou-me
cair dentro de uma grande taça de prata com leite, partindo depois a fugir o mais
depressa que podia. Eu mergulhara de cabeça e, se não fosse bom nadador, teria
passado um mau bocado, pois Glumdalclitch encontrava-se naquela altura no
outro lado da sala e a rainha ficou tão perturbada que não teve presença de
espírito suficiente para me valer. Porém, depressa a minha aiazinha correu em
meu auxílio, tirando-me da taça quando eu já tinha engolido quase uma canada
de leite. Puseram-me logo de cama, mas eu não sofrera outro dano a não ser a
perda de um vestuário completo, que ficou todo estragado. Quanto ao anão,
apanhou uma sova mestra e, para maior castigo, foi obrigado a beber o leite da
taça onde me fizera cair, perdendo com esta ousadia todo o seu prestígio junto da
rainha, que imediatamente o cedeu a uma distinta dama, depois do que o perdi
completamente de vista, para meu grande alívio, pois não sabia até que ponto
criatura tão maliciosa era capaz de levar o seu ressentimento.