Page 134 - As Viagens de Gulliver
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exame rigoroso dos meus dentes, observaram que eu era um animal carnívoro,
      mas, uma vez que a maior parte dos quadrúpedes me eram muito superiores, os
      ratos do campo e outros, velozes de mais, não percebiam como eu subsistiria, a
      não ser que me alimentasse de caracóis e insectos, o que eles se prontificaram a
      demonstrar,  por  meio  de  uma  série  de  argumentos  científicos,  ser  quase
      impossível. Um deles sugeriu que eu pudesse ser um embrião, resultante de um
      nascimento  prematuro.  Mas  esta  opinião  foi  rejeitada  pelos  outros  dois,  ao
      notarem como os meus membros eram perfeitos e bem acabados, além de eu
      aparentar ter vivido vários anos, como era manifesto pela minha barba, cujos
      pêlos ressaltavam com toda a clareza através da lupa. Não admitiam a hipótese
      de  eu  ser  um  anão,  pois  a  minha  pequenez  excluía  confrontos,  pois  o  anão
      favorito  da  rainha,  o  mais  pequeno  de  que  havia  notícia  neste  país,  tinha
      aproximadamente  trinta  pés  da  altura.  Depois  de  muito  discutirem,  decidiram,
      unanimemente, que eu não passava de um relplum scalcath, o que interpretado
      literalmente quer dizer lusus naturae, conclusão perfeitamente de acordo com a
      moderna  filosofia  da  Europa,  cujos  mestres,  desdenhando  o  antigo  subterfúgio
      das causas ocultas, mercê do qual os discípulos de Aristóteles tentavam em vão
      disfarçar a  sua  ignorância,  inventaram  esta maravilhosa  solução  para  todas  as
      dificuldades, opostas pelo inexplicável ao avanço do conhecimento humano.
          Depois desta conclusão decisiva, pedi para dizer algumas palavras.
          Dirigi-me a Sua Majestade e garanti-lhe que vinha de um país povoado
      por vários milhões de criaturas de ambos os sexos, da mesma estatura que eu;
      onde os animais, as árvores e as casas guardavam a mesma proporção, e onde,
      por conseguinte, eu tinha a mesma possibilidade de me defender e procurar o
      meu sustento que qualquer um dos súbditos de Sua Majestade aqui. E com isto
      respondi  categoricamente  aos  argumentos  daqueles  cavalheiros,  que  me
      replicaram apenas com um sorriso de desdém e dizendo que o fazendeiro me
      ensinara muito bem a lição. O rei, que tinha uma melhor compreensão, mandou
      embora os seus sábios e ordenou que lhe trouxessem o fazendeiro, que, por sorte,
      ainda não abandonara a cidade; e, tendo-o interrogado primeiro particularmente
      e  em  seguida  em  confronto  comigo  e  com  a  rapariguinha,  Sua  Majestade
      começou a acreditar na possível veracidade de tudo o que lhe tínhamos contado.
          Pediu  à  rainha  que  desse  ordens  para  que  tivessem  comigo  especial
      cuidado e foi de opinião que Glumdalclitch devia continuar a tratar de mim, pois
      notara que tínhamos uma grande afeição um pelo outro. Foi-lhe preparado um
      aposento  conveniente  na  corte  e  uma  mestra  designada  para  cuidar  da  sua
      educação, assim como uma criada para a vestir e duas outras para se ocuparem
      dos serviços domésticos; mas tratar de mim era tarefa exclusivamente sua.
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