Page 207 - As Viagens de Gulliver
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Disse-me dar-lhe que pensar eu falar tão alto, perguntando-me se o rei ou
      a rainha daquele país eram duros de ouvido. Contei-lhe que durante dois anos não
      falei de outro modo, estranhando também a sua voz e a dos seus homens, que
      pareciam estar sempre a segredar, apesar de os conseguir ouvir bastante bem.
      Que, para mim, falar naquele país era como se um homem que se encontrasse
      na rua tentasse falar para outro no alto de um campanário, excepto quando me
      colocavam  sobre  uma  mesa  ou  me  tinham  na  palma  da  mão.  Disse-lhe  ter
      observado  ainda  outra  coisa:  que,  quando  primeiro  entrei  para  o  barco  e  fui
      rodeado pelos marinheiros, olhei para eles como as criaturas mais insignificantes
      e desprezíveis que jamais me fora dado ver. E, de fato, quando me encontrava no
      país daquele príncipe, não suportava ver a minha imagem refletida no espelho,
      depois  de  os  meus  olhos  se  terem  habituado  a  seres  tão  prodigiosos,  pois  a
      comparação  dava-me  uma  sensação  bastante  desprezível  de  mim  próprio.  O
      capitão disse ter, durante o nosso jantar, observado que eu olhava para tudo de
      modo  singular,  parecendo  às  vezes  fazer  um  esforço  para  conter  o  riso,  não
      sabendo  ele  que  pensar  sobre  isso,  acabando  por  o  atribuir  a  qualquer
      perturbação  mental.  Respondi-lhe  que,  de  fato,  eu  não  podia  reagir  de  outro
      modo,  ao  ver  os  pratos  do  tamanho  de  moedas  de  três  pence,  uma  perna  de
      porco  que  quase  cabia  inteira  na  boca,  uma  chávena  mais  pequena  que  uma
      casca  de  noz;  e  continuei,  descrevendo  da  mesma  maneira  todos  os  utensílios
      caseiros  e  provisões.  É  que,  apesar  de  a  rainha  me  ter  arranjado  todo  um
      conjunto  de  coisas  necessárias  para  mim,  enquanto  me  encontrava  ao  seu
      serviço, as minhas ideias eram completamente absorvidas por tudo o que eu via
      em redor, esquecendo eu a minha pequenez, como as pessoas fazem com as suas
      próprias culpas. O capitão percebeu a minha ironia muito bem, respondendo-me
      alegremente, por meio de um provérbio, que eu tinha mais olhos que barriga,
      pois não notara que eu tivesse bom apetite, apesar de ter jejuado o dia inteiro. E,
      continuando na mesma boa disposição, assegurou que daria de bom grado uma
      centena de libras para ter visto a minha caixa no bico da águia e, depois, a sua
      queda  de  tão  grande  altura  para  o  mar,  o  que  teria  de  certeza  constituído  um
      espectáculo espantoso, digno de uma descrição para a posteridade. Neste passo, a
      afinidade com o episódio de Fáeton, filho do Sol, era de tal maneira óbvia que ele
      não se conteve em referi-la, embora eu não tenha apreciado a ideia.
          O capitão, que estivera em Tonquim e regressava agora a Inglaterra, fora
      impelido para nordeste, a 44 graus de latitude e 143 graus de longitude. Porém,
      dois dias depois de eu ter sido recebido a bordo, levantaram-se os ventos alísios,
      levando-nos  rumo  ao  Sul  durante  muito  tempo,  e,  tendo  costeado  a  Nova
      Holanda, seguimos sul-sudeste até dobrarmos o cabo da Boa Esperança. A nossa
      viagem  correu  sempre  de  modo  favorável,  e  eu  não  vou  fatigar  o  leitor  com
      mais pormenores. O capitão acostou em um ou dois portos, para reabastecimento
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