Page 204 - As Viagens de Gulliver
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riu-se do disparate e entrou ele próprio para o bote, ordenando aos seus homens
      para trazerem um cabo forte. Como o mar se encontrava calmo, remou várias
      vezes à minha volta, observando as janelas e as grades que as protegiam. Notou
      também  dois  grampos  num  dos  lados  que  era  só  de  tábuas,  sem  qualquer
      passagem para a luz. Ordenou então aos seus homens que encostassem a esse
      lado, e, amarrando o cabo a um desses grampos, que rebocassem o meu cofre
      (como ele o designava) até ao barco. Uma vez aí, disse para amarrarem outro
      cabo à argola fixa na tampa e tentarem içar o cofre por meio de roldanas, o que
      os marinheiros todos juntos não conseguiram fazer mais de dois ou três pés. Disse
      terem visto o meu bastão e o lenço surgirem através do orifício, concluindo que
      algum  infeliz  se  encontrava  fechado  no  interior.  Perguntei-lhe  se  ele  ou  a
      tripulação tinham visto no ar alguns pássaros descomunais por volta da hora a que
      primeiro  me  avistaram,  ao  que  ele  me  respondeu  que,  conversando  sobre  o
      assunto  com  os  marinheiros  enquanto  eu  dormia,  um  deles  lhe  dissera  ter
      observado  três  águias  voando  em  direção  a  norte,  não  notando,  porém,  que
      fossem maiores que o normal, o que eu penso dever ser atribuído à grande altura
      a que iam. Disse também não perceber a razão de ser da minha pergunta. Pedi
      ainda  ao  capitão  que  me  dissesse,  aproximadamente,  a  que  distância  pensava
      encontrarmo-nos de terra, respondendo-me que, segundo calculava, seria cerca
      de uma centena de milhas. Garanti-lhe que se enganava quase por metade, pois
      não havia duas horas que eu deixara o país de onde vinha, antes de ter caído à
      água.  Nessa  altura  convenceu-se  de  novo  que  eu  não  me  encontrava  bem  da
      cabeça,  o  que  me  deu  a  entender,  aconselhando-me  a  ir  deitar-me  num
      camarote,  que  preparara  para  mim.  Assegurei-lhe  que  me  encontrava
      perfeitamente, melhor que nunca mesmo, graças à excelente refeição e ótima
      companhia. Ele então tomou uma expressão séria e pediu-me para, com toda a
      liberdade, me perguntar se o meu espírito não era perturbado pela consciência de
      algum crime horrendo, em virtude do qual fora condenado por algum príncipe a
      ser enclausurado naquele cofre, como tem acontecido noutros países a grandes
      criminosos, que se vêem no meio do mar, em barcos cheios de rombos e sem
      mantimentos;  pois  que,  apesar  de  não  lhe  agradar  levar  tal  homem  a  bordo,
      prometia,  contudo,  pela  sua  honra,  colocar-me  a  salvo  em  terra,  no  primeiro
      porto a que arribássemos. Acrescentou terem as suas suspeitas sido aumentadas
      pela maneira absurda como pela primeira vez me dirigi aos marinheiros e em
      seguida a ele próprio, referindo-me ao meu quartinho ou cofre, assim como os
      meus modos e comportamento durante o jantar.
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