Page 325 - As Viagens de Gulliver
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consinto em que a minha obra só seja impressa depois de que ela vigore.
Na minha mocidade percorri grande número de relações com infinito
prazer; mas, desde que dei quase volta ao mundo, e vi coisas com os meus
próprios olhos, perdi o gosto por essa espécie de literatura; prefiro ler romances.
Desconfio de que o leitor pensa como eu.
Os meus amigos, julgando que a relação que escrevi das minhas viagens
tinha um certo ar de verdade, que agradaria ao público, fizeram-me ceder aos
seus conselhos e consenti na impressão. Sofri muitos desaires na minha vida, mas
nunca tive tendência para mentir, seguindo assim o preceito de Virgílio na
Eneida.
Sei que não há muita honra em publicar narrações de viagens; que isto
não demanda nem gênio nem ciência e que basta possuir uma boa memória ou
ter um diário exato; sei também que os fazedores de relações se assemelham aos
dicionaristas e são, no fim de certo tempo, eclipsados, como que aniquilados por
uma multidão de escritores posteriores, que repetem tudo o que os outros
disseram e acrescentam coisas novas. Talvez me aconteça o mesmo; viajantes
irão aos países em que estive, inquirirão das minhas descrições, farão cair o meu
livro e esquecer, talvez, o que nunca escrevi. Veria isso como uma verdadeira
mortificação, se escrevesse para a glória; como, porém, escrevo para utilidade
do público, nenhum cuidado me dá e estou preparado para todas as
eventualidades.
Desejaria bem que o meu livro tivesse uma crítica severa; porém que se
poderia dizer de um viajante que descreve países em que o nosso comércio não
tem interesses e em que não se faz referência alguma às nossas manufaturas?
Escrevi sem paixão, sem espírito de partido e sem querer ferir ninguém; escrevi
para um fim mais nobre, que é a instrução geral do gênero humano; escrevi sem
ter em vista interesse algum ou vaidade, de maneira que os observadores, os
examinadores, os críticos, os chicaneiros, os tímidos, os políticos e os pequenos
gênios intrujões, os espíritos mais difíceis e mais injustos nada terão que dizer-me
e não encontrarão ensejo para exercer o seu odioso talento.
Confesso que me fizeram compreender que devia primeiro, como bom
súdito e bom inglês, apresentar ao secretário de Estado, no meu regresso, uma
memória instrutiva concernente às minhas descobertas, visto como todas as
terras que um súdito descobre, pertencem, de direito, à coroa. Entretanto duvido
que a conquista dos países de que se trata seja tão fácil como a que Fernando
Cortez fez outrora de uma região da América, em que os espanhóis chacinaram
tantos pobres índios nus e desarmados. Primeiramente, no que diz respeito ao país