Page 320 - As Viagens de Gulliver
P. 320

prodígio. Isto parecia-me tão extraordinário, como se ouvisse falar um cão ou
      uma vaca na Inglaterra. Responderam-me com toda a humanidade e delicadeza
      possíveis,  que  me  não  apoquentasse,  e  que  estavam  certos  de  que  o  capitão
      quereria embarcar-me a bordo e levar-me grátis para Lisboa, de onde poderia
      passar  para  a  Inglaterra;  que  dois  deles  iriam  naquele  momento  ter  com  o
      capitão para o informar do que tinham visto e receber as suas ordens; mas, ao
      mesmo tempo, salvo se lhes desse a minha palavra de não fugir, me ligariam.
      Disse-lhes que fizessem de mim tudo o que julgassem a propósito.
          Tinham muita vontade de saber a minha vida e as minhas aventuras; mas
      dei-lhes  poucas  satisfações  e  todos  concluíram  que  as  minhas  desgraças  me
      haviam perturbado o espírito. Ao cabo de duas horas, a chalupa, que fora levar
      água doce ao navio, voltou com ordem de me conduzir imediatamente a bordo.
      Prostrei-me  de  joelhos  para  pedir  que  me  deixassem  à  vontade  e  que  não
      quisessem tolher-me a liberdade, mas foi em vão; fui ligado e metido no escaler,
      e nesse estado conduzido a bordo e ao camarote do capitão.
          Chamava-se Pedro Mendes e era um homem muito generoso e delicado.
      Pediu-me, em primeiro lugar, que lhe dissesse quem era e depois perguntou-me
      se  queria  comer  ou  beber.  Garantiu-me  que  seria  tratado  como  ele  próprio  e,
      enfim, disse-me coisas tão obsequiosas, que fiquei admirado de encontrar tanta
      bondade num Yahu. Tinha, no entanto, um aspecto sombrio, sorumbático e rígido,
      e só respondi a todas as suas amabilidades que a bordo da minha canoa ainda
      tinha de comer. Ordenou, porém, que me servissem um frango e me fizessem
      beber excelente vinho; e, enquanto se esperava, mandou arranjar uma boa cama
      num quarto muito cômodo. Quando aí fui conduzido, não quis despir-me, e deitei-
      me na cama conforme estava. Ao fim de meia hora, enquanto toda a tripulação
      estava no jantar, fugi do quarto no desejo de me lançar a nado, a fim de não ser
      obrigado a viver com Yahus. Mas fui detido por um dos marinheiros, e o capitão,
      sendo informado da minha tentativa, ordenou que me encerrassem no quarto.
          Depois do jantar, D. Pedro veio ter comigo e quis saber qual o motivo que
      me tinha levado a formar a empresa de um homem desesperado. Assegurou-
      me, ao mesmo tempo, que só tinha empenho em dar-me prazer, e falou-me de
      uma forma tão cativante e persuasiva que comecei a olhá-lo como animal um
      pouco razoável. Referi-lhe, em poucas palavras, a história da minha viagem, a
      insurreição  da  tripulação  do  navio  de  que  eu  era  o  capitão,  e  a  resolução  que
      tinham tomado de me deixar sobre um ponto ignorado; declarei-lhe que passara
      três anos com os huyhnhnms, que eram cavalos falantes e animais raciocinantes.
      O  capitão  tomou  tudo  isso  por  visões  e  mentiras,  o  que  me  melindrou  em
      extremo.  Disse-lhe  que  esquecera  a  mentira  desde  que  deixara  os  Yahus  da
      Europa; que nos huyhnhnms não se mentia, nem mesmo às crianças ou criados;
   315   316   317   318   319   320   321   322   323   324   325