Page 322 - As Viagens de Gulliver
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não me podiam sujar. Chegámos a Lisboa a 15 de Novembro de 1715. O capitão
forçou-me então a vestir a sua roupa, para evitar que a escumalha nos apupasse
pelas ruas. Levou-me para sua casa e quis que permanecesse com ele durante a
minha estada nessa cidade. Pedi-lhe instantemente que me alojasse no quarto
andar, num sítio afastado, onde não convivesse com pessoa alguma. Solicitei-lhe
também o favor de não contar fosse a quem fosse o que eu lhe narrara acerca da
minha permanência nos huyhnhnms, porque, se a minha história fosse conhecida,
seria em breve importunado com visitas, com uma infinidade de curiosos e, o
que seria pior, talvez lançado às fogueiras pela Inquisição.
O capitão, que não era casado, só tinha três criados, um dos quais, o que
me levava as refeições ao quarto, tinha boas maneiras comigo e parecia ter tão
bom senso para um Yahu que a sua companhia não me desagradou, e conseguiu
de mim que, de vez em quando, chegasse a uma fresta para tomar ar; em
seguida persuadiu-me a descer ao andar de baixo e a deitar-me num quarto cuja
janela dava para a rua; mas, a princípio, retirei tão depressa a cabeça quanto a
deitara de fora; o povo feria-me a vista. Contudo, fui-me paulatinamente
habituando. Oito dias depois fez-me descer para um andar mais baixo; por fim,
triunfou tão bem da minha fraqueza, que me convidou a ir sentar-me à porta
para ver os que passavam e, em seguida, acompanhá-lo algumas vezes pela rua.
D. Pedro, a quem explicara a situação da minha família e dos meus
negócios, disse-me, um dia, que era obrigado por honra e consciência a voltar ao
meu país e ir viver em minha casa com a mulher e os filhos. Ao mesmo tempo
avisou-me de que estava no porto um navio pronto a fazer-se de vela para a
Inglaterra e assegurou-me que forneceria tudo quanto eu carecesse para a minha
viagem. Aleguei vários motivos, que me desviavam de voltar a viver no meu país
e que me haviam feito tomar a resolução de buscar uma ilha deserta, onde
pudesse findar os meus dias. Replicou que essa ilha, que eu desejava procurar,
era uma quimera, e que encontraria homens em toda a parte; que, pelo contrário,
quando estivesse em minha casa, seria eu o dono e poderia permanecer solitário
as vezes que me aprouvesse.
Por fim, rendi-me, não podendo fazer outra coisa; tinha-me, então,
tornado um pouco menos selvagem. Deixei Lisboa em 24 de Novembro, e
embarquei num navio mercante. D. Pedro acompanhou-me até o porto e teve a
amabilidade de me emprestar a soma de vinte libras esterlinas. Durante a
viagem, não tive convivência com o capitão nem com os passageiros e pretextei
uma doença para poder ficar sempre em meu camarote. A 5 de Dezembro de
1715 lançámos ferros nas Dunas, quase às nove horas da manhã, e às cinco da
tarde cheguei a Redriff de boa saúde e recolhi-me à casa. Minha mulher e toda a
família, ao tornar a ver-me, testemunharam a sua surpresa e a sua alegria; como