Page 321 - As Viagens de Gulliver
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que, quanto ao mais, acreditaria o que lhe conviesse, mas estava pronto a
responder a todas as dificuldades que poderia opor e me orgulhava de lhe poder
fazer conhecer a verdade.
O capitão, homem sensato, depois de me haver dirigido outras perguntas,
e ter visto que tudo o que dizia era justo, e que todas as partes da minha história se
relacionavam umas com as outras, começou a formar melhor opinião da minha
sinceridade, tanto mais que me confessou que havia tempo se encontrara com
um marinheiro holandês que lhe disse que, com mais cinco camaradas, havia
desembarcado numa certa ilha ou continente ao sul da Nova-Holanda, onde
tinham tomado aguada; que haviam descortinado um cavalo levando diante de si
um tropel de animais perfeitamente semelhantes aos que lhe descrevera e a que
eu dava o nome de Yahus com muitas outras particularidades, que disse ter
esquecido, e de que não se dera o trabalho de guardar de memória, tomando-as
como mentiras.
Acrescentou que, embora eu fizesse profissão de ter grande amor à
verdade, quis que lhe desse a minha palavra de honra de ficar com ele durante
toda a viagem, sem pensar em atentar contra a minha existência; que, em caso
contrário, me encerrariam até que chegasse a Lisboa. Prometi-lhe o que exigisse
de mim, mas protestei, ao mesmo tempo, que preferia sofrer os mais
desagradáveis tratos a consentir em voltar a viver com os Yahus do meu país.
Nada se passou de notável durante a nossa viagem. Para testemunhar ao
capitão quanto estava sensibilizado pelas suas bondades, conversava com ele
algumas vezes por gratidão, quando me pedia instantemente que lhe falasse, e
tentava, então, ocultar a minha misantropia e a minha aversão por todo o gênero
humano. No entanto, escaparam-me, por vezes, alguns ditos satíricos e
mordentes, que escutava como gentil-homem ou aos quais fingia não dar
atenção. Passava, porém, a mor parte do tempo só e isolado no meu camarote, e
não queria dar palavra a tripulante algum. Tal era o estado do meu cérebro, que a
minha convivência com os huyhnhnms me enchera de idéias sublimes e
filosóficas. Sentia-me dominado por uma extraordinária misantropia, semelhante
a esses espíritos sombrios, a esses ferozes solitários, a esses meditativos censores
que, sem terem freqüentado os huyhnhnms, se melindram por conhecer a fundo
o carácter dos homens e por possuir um soberano desprezo pela humanidade.
O capitão pediu-me, várias vezes, que me despojasse das peles de coelho,
e ofereceu-se para me emprestar tudo o que fosse necessário para me vestir dos
pés à cabeça; agradeci-lhe, porém, os seus oferecimentos, sentindo horror em
envolver o meu corpo com o que tinha sido usado por um Yahu. Consenti apenas
em que me emprestasse duas camisas brancas que, sendo muito bem lavadas,