Page 319 - As Viagens de Gulliver
P. 319

Estava seriamente embaraçado; não me atrevia a voltar ao sítio onde fora
      atacado  e,  como  era  obrigado  a  tomar  o  rumo  norte,  tornava-se-me  preciso
      remar sempre, porque tinha o vento de nordeste. No momento em que lançava
      uma vista de olhos para todos os lados, a fim de descobrir alguma coisa, reparei,
      ao nordeste, numa vela que, momento a momento, crescia a olhos vistos. Não
      sabia se devia ou não caminhar para ela. Por fim, o horror que concebera por
      toda a raça dos Yahus fez-me tomar a resolução de virar de bordo e remar para o
      sul,  a  fim  de  voltar  a  essa  mesma  baía  de  onde  saíra  de  manhã,  preferindo
      expor-me a  toda  a  casta  de perigo  a  viver  com  Yahus.  Aproximei  a  canoa  da
      praia o mais que me foi possível e, quanto a mim, ocultei-me a alguns passos, por
      trás de uma pequena rocha que estava perto do regato a que já me referi.
          O navio avançou quase meia légua pela baía e mandou o escaler com
      tonéis para se fornecer de água. Este local era conhecido e visitado muitas vezes
      pelos viajantes, em virtude daquele regato. Os marinheiros, ao desembarcarem,
      viram  primeiro  a  minha  canoa  e,  principiando  a  examiná-la,  sem  grande
      trabalho notaram que aquele a quem pertencia não estava longe. Quatro deles,
      bem  armados,  procuraram  por  todos  os  lados  e  por  fim  encontraram-me
      escondido com a face voltada para o chão por trás da rocha. A princípio ficaram
      surpreendidos  com  o  meu  aspecto,  minha  roupa  de  peles  de  coelho,  os  meus
      sapatos  de  pau  e  as  minhas  meias  forradas.  Presumiram  logo  que  não  era
      daquele país, onde todos os habitantes andavam nus. Um deles ordenou que me
      levantasse e perguntou-me em língua portuguesa quem eu era. Fiz-lhe um grande
      cumprimento e nessa mesma língua, que entendia perfeitamente, respondi que
      era  um  pobre  Yahu  expulso  do  país  dos  huyhnhnms  e  que  lhe  pedia  que  me
      deixasse passar. Ficaram admirados de me ouvir falar a sua língua e calcularam,
      pela  cor  do  meu  rosto,  que  era  europeu;  não  sabiam,  porém,  o  que  eu  queria
      dizer  com  as  palavras  Yahu  e  Huyhnhnm;  e,  não  puderam,  simultaneamente,
      deixar  de  rir  com  a  minha  acentuação,  que  se  assemelhava  ao  relincho  de
      cavalo.
          Percebi, pelo seu aspecto, movimentos de tédio, e estava já na disposição
      de voltar-lhes as costas e dirigir-me para a canoa, quando puseram as mãos em
      mim e me obrigaram a dizer-lhes qual a minha naturalidade, de onde vinha e
      outras  perguntas  idênticas.  Respondi-lhes  que  nascera  na  Inglaterra,  de  onde
      partira havia quase cinco anos e que, por então, reinava a paz entre aquele país e
      o  meu;  que,  assim,  esperava  que  tivessem  a  bondade  de  não  me  tratar  como
      inimigo, pois lhes não queria mal algum, e que era um pobre Yahu que buscava
      uma ilha deserta onde pudesse passar na solidão o resto da minha desafortunada
      existência.
          Fiquei  a  princípio  surpreendido,  quando  me  falaram,  e  julguei  ver  um
   314   315   316   317   318   319   320   321   322   323   324