Page 74 - As Viagens de Gulliver
P. 74

curioso, relatando alguma coisa acerca dos meus assuntos domésticos e modo de
      vida durante a minha residência de nove meses e treze dias neste país. Engenhoso
      de natureza e também forçado pela necessidade, construí para meu uso, com as
      maiores árvores do parque real, uma mesa e uma cadeira bastante aceitáveis.
      Duzentas costureiras foram destacadas para me confecionarem camisas e roupa
      de cama e mesa, no tecido mais forte e grosseiro que se conseguiu arranjar, que,
      apesar disso, precisou de ser reforçado com várias dobras, pois era um pouco
      mais  fino  que  cambraia.  Os  tecidos  deles  têm,  geralmente,  três  polegadas  de
      largura, e com três pés de comprimento constituem uma peça. Para me tirarem
      as medidas, deitei-me ao comprido no chão, colocando-se uma costureira junto
      ao pescoço e outra a meio da perna, segurando pelas extremidades uma forte
      corda esticada entre ambas, que uma terceira mediu com a ajuda de uma régua
      de polegada. Depois mediram o meu polegar direito e deram-se por satisfeitas,
      pois que, com base no cálculo matemático, estabeleceram relação para as outras
      medidas que necessitavam, tais como a medida do punho ser duas vezes aquele e
      assim para o pescoço e cintura. Para o desenho dos moldes estendi no chão a
      minha camisa velha, e desta forma me talharam as novas, que me assentavam
      perfeitamente.  De  igual  modo  foram  designados  trezentos  alfaiates  para  me
      fazerem  os  fatos,  servindo-se,  porém,  de  outros  meios  para  me  tirarem  as
      medidas. Comigo  de  joelhos,  encostaram-me uma  escada,  por  onde  um deles
      trepou até ao meu pescoço. Uma vez aí, deixou cair um fio-de-prumo, que ia do
      colarinho até ao chão, o que correspondia exatamente à altura do meu casaco.
      As  medidas  da  cintura  e  mangas  fui  eu  mesmo  que  as  tirei.  Quando  os  meus
      fatos  ficaram  prontos,  o  que  foi  feito  em  minha  casa,  a  única  onde  cabiam,
      pareciam daquelas mantas de retalhos, feitas pelas damas em Inglaterra, só que
      eram todas numa cor.
          Dispunha  de  trezentos  cozinheiros  para  prepararem  os  meus  alimentos,
      instalados  com  as  suas  famílias  em  pequenos  apartamentos  adequados,
      construídos em volta de minha casa, onde cada um me preparava dois pratos.
      Com a minha mão, pegava em vinte criados e colocava-os em cima da mesa,
      enquanto  mais  cem  permaneciam  no  chão,  uns  com  travessas  de  comida  e
      outros  com  barris  de  vinho  e  outras  bebidas,  sobre  os  ombros.  Tudo  isto,
      conforme eu ia pedindo, os criados, em cima, içavam muito engenhosamente,
      por meio de cordas, como se faz na Europa para extrair água de um poço. Cada
      prato da sua comida equivalia para mim a um bom pedaço, que eu metia de uma
      só  vez  na  boca,  e  o  conteúdo  de  cada  barril  a  um  trago  razoável.  O  carneiro
      deles, em comparação com o nosso, deixa muito a desejar, mas a carne de vaca
      é  excelente.  Coube-me  uma  vez  um  lombo  de  vaca  tão  grande  que  tive  de  o
      cortar em três bocados, mas isso é muito raro. Os meus criados ficaram muito
      espantados  por  me  verem  comê-lo  com  costelas  e  tudo,  como  no  nosso  país
   69   70   71   72   73   74   75   76   77   78   79