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ESPECIAL BICENTENÁRIO
Na pouco democrática República Flávio de Barros / Acervo Museu da República
Brasileira, autoritarismo e cultura nacional
continuaram a andar de mãos dadas. Em
nome da defesa de um tipo de fé, de um
modo de vida e de um tipo de organização
social, massacres como a Guerra de
Canudos marcaram negativamente
esta trajetória. Naquela ocasião, o forte
sertanejo narrado por Euclides da Cunha foi
também condenado pela sua cultura, isto
é, por desenvolver uma forma de inserção
social bastante própria
400 prisioneiros em Canudos, 1897
poderiam acarretar uma caminhada língua e demais meios de significação e deixaram seu continente, recebemos
de desconstrução daquilo que parecia comunicação”, sendo um dos elemen- não apenas braços de mão-de-obra,
incontestável ou chancelado enquanto tos mais essenciais numa formação mas a materialização de um projeto de
verdade absoluta, não trouxeram os nacional. Neste sentido, seu lugar na nação. Não foram apenas as inserções
resultados esperados. Entre Borba Ga- constituição dos projetos de poder não na agricultura e na indústria nascen-
to[s], Getúlio[s] Vargas, Dom Pedro[s], pode ser menosprezado. te que motivou o empreendimento
Marechai[s] Deodoro[s] e Dom Sebas- Até agora, a produção da História importador de pessoas, mas a crença
tião, ainda lutamos para a promoção do Brasil e a construção de elementos na alteração do quadro racial e social.
do devido reconhecimento a Abdias de distinção social e cultural foram À luz do racismo científico, negros e
do Nascimento, Zumbi dos Palmares, verdadeiras janelas que dão acesso a mestiços foram condenados ao desapa-
André Rebouças, Luiz Gama, Teresa de um problema ainda mais profundo. recimento social, cultural, econômico
Benguela e tantas outras figuras que Os projetos de modernização e cons- e até potencialmente físico. Nas dico-
merecem ser chamadas e consideradas trução de uma coletividade chamada tomias entre uma sociedade idealiza-
como parte de uma História do Brasil. Brasil estiveram sob as bases arcaicas e da a partir de padrões eurocêntricos
referências exteriores durante o século e uma realidade africanizada, forjada
O mito da cultura nacional XIX. Contudo, a emergência de uma na escravidão, atabaques, capoeira e
República que não rompeu estrutural- tantas outras manifestações foram con-
Desafiando-se em conceituar o mente com tais características formati- sideradas casos de polícia, num amplo
termo “nação”, Hélio Jaguaribe, em O vas deu segmento a um processo de ex- esforço de negação das origens e do
Nacionalismo na Atualidade Brasileira, clusão sociocultural e reforço dos laços protagonismo do continente negro na
apontou para a existência de condições de dependência, com implicações em formação social brasileira.
objetivas e subjetivas em sua confor- diferentes ramos da sociedade. Na pouco democrática República
mação. Dentre os elementos encarados Essa breve fase de nossa reflexão Brasileira, autoritarismo e cultura na-
como “objetivos”, a cultura foi encara- se inicia nos portos. Foram neles que, cional continuaram a andar de mãos
do como um complexo somatório en- diante da maior onda migratória da dadas. Em nome da defesa de um tipo
tre a “cosmovisão básica de um povo, a História Contemporânea, europeus de fé, de um modo de vida e de um
ESQUERDA PETISTA #11 - Setembro 2020 95