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ESPECIAL BICENTENÁRIO
Domínio público, Museus Castro Maya e inserindo-o no autoproclamado
“Novo Mundo”, uma extensão ideali-
zada de um mundo europeu também
idealizado.
Neste processo, de clara negação
da História e da Memória dos sujei-
tos escravizados, suas presenças quan-
titativas e qualitativas foram desafios
na construção do dito Brasil indepen-
dente, a partir dos projetos das elites.
Com olhares para trás (a experiência
colonial) e para cima (o referencial
europeu), as concepções de uma na-
ção modernizada estavam enraizadas
a partir da negação da própria expe-
riência histórica do país. A escravidão,
enquanto base político-formativa do
Estado e da sociedade, encontrou-se
numa situação contraditória, represen-
tando, ao mesmo tempo, um perigo ao
Vendedor de flores e de fatias de coco. Aquarela sobre papel de Jean-Baptiste Debret projeto de Brasil do século XIX, uma
“extensão” europeia nos trópicos, mas
um mal necessário, ao ser considerado
Sociedade da escravidão por Bernardo Pereira Vasconcelos, en-
e do privilégio quanto uma responsável pela civiliza-
ção do país.
Ao tentar investigar os arcaísmos “Não se escapava da Escravidão”. Sob essa perspectiva ambígua, a
socioculturais e a influência do neoco- Com essa afirmação, a antropóloga Li- constituição de uma nação, de um Es-
lonialismo, passearei pelo campo dos lia Schwarcz no livro Sobre o Autorita- tado e de uma sociedade supostamen-
costumes, da História, das relações so- rismo Brasileiro salientou o aspecto da te independente se deu nos marcos
ciais, da política internacional e tam- presença do sistema escravocrata em de uma permanência de uma depen-
bém de concepções de nação. Afinal, todas as esferas da sociedade brasileira. dência sociocultural e econômica, das
se Cultura, segundo Fernand Braudel Suas implicações para a constituição tentativas de reproduções ou adapta-
em Civilização Material, Economia e Ca- do Estado e da Nação foram tamanhas. ções de hierarquias oriundas da colo-
pitalismo, é “espírito, estilo de vida em Nos idos do século XVII, Padre Antô- nização e de uma concepção de mun-
todos os sentidos do termo, literatura, nio Vieira, citado pelo historiador Luiz do eurocêntrica. Exemplos não faltam
arte, ideologia”, composta por uma Felipe de Alencastro em O Trato dos Vi- para validar tal constatação. Um deles,
verdadeira “multidão de bens, mate- ventes, defendia a escravidão sob um durante o século XIX, desde ao menos
riais e espirituais”, um difícil esforço ponto de vista regenerador. Por meio o período Joanino e com maior força
de caracterização sobre suas naturezas do tráfico, operava-se supostamente durante o Segundo Reinado, foi o cres-
leva ao reconhecimento de suas inter- um processo de desenraizamento e cimento no número de concessões de
secções com as mais diferentes esferas “dessocialização”, retirando o sujeito títulos de nobreza e ordens, evidentes
da realidade. de uma situação considerada “pagã” marcadores de distinção social e atri-
ESQUERDA PETISTA #11 - Setembro 2020 93